Trapaça punida*
Todas as vezes que um atleta russo subir ao pódio nos
Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, na Coreia do Sul, em fevereiro do
ano que vem, a bandeira da Rússia não poderá ser hasteada e o hino do país não
será ouvido. Pela primeira vez na história dos Jogos, o Comitê Olímpico
Internacional (COI) decidiu banir um país inteiro pela prática de “doping de
estado”.
Os atletas russos que quiserem participar das competições
na neve deverão submeter-se ao exame de uma comissão internacional de avaliação
e, uma vez aprovados, competirão sob uma bandeira neutra, provavelmente o
pavilhão do próprio COI, e usando uniformes diferenciados, sem alusão ao país
de origem. Ao ineditismo desse tipo de banimento, surpreendente por si só,
some-se o fato de que o país banido é nada menos do que uma das três maiores
potências esportivas do mundo, ao lado da China e dos Estados Unidos.
Como se sabe, a prática de doping – quando um atleta faz
uso de substâncias proibidas que melhoram artificialmente o seu desempenho
durante a competição – não é uma novidade no meio esportivo. Mas é a primeira
vez que um país inteiro é punido, e não apenas os atletas desonestos,
individualmente. Isso mostra que para construir a sua imagem de superpotência
esportiva – e fazer disso o uso político que fosse mais conveniente ao regime –
a Rússia adotou o doping de seus atletas como uma política de estado.
Após uma longa investigação que durou cerca de três anos,
o COI concluiu que houve “manipulação sistêmica do controle de doping” na
Rússia. Para a entidade, o Ministério dos Esportes russo foi leniente ao tratar
da questão.
“Trata-se de um ataque sem precedentes à integridade do
esporte”, disse Thomas Bach, presidente do COI. Segundo ele, em Sochi, cidade
russa que sediou os Jogos de Inverno de 2014, houve “ampla manipulação de
resultados” no laboratório de controle de doping. Na Olimpíada de 2016,
realizada no Rio de Janeiro, um terço dos atletas da delegação russa não pôde
competir por ter sido reprovado nos testes antidoping.
Para pôr em prática a sua política estatal de triunfar
sob um manto de vigarice, a Rússia adotou uma estratégia de manipulação de
resultados que chega a lembrar os tempos da guerra fria, com lances que mais
parecem saídos de filmes de suspense do que das páginas dos cadernos esportivos
dos jornais.
Agentes do serviço secreto russo promoviam a troca das
amostras de urina e de sangue dos atletas por outras que haviam sido coletadas
antes do período das competições e eram armazenadas com este propósito.
Sorrateiramente, durante as madrugadas, os agentes trocavam as amostras por
meio de buracos feitos nas paredes dos laboratórios.
Segundo apurou o COI, Vitaly Mutko, ex-ministro dos
Esportes e atual organizador da Copa do Mundo de 2018, a ser realizada na
Rússia, era o chefe do esquema que permitiu o doping dos atletas russos por
anos a fio sem que estes corressem o risco de serem pegos. Mutko foi banido
para sempre de todos os eventos olímpicos.
O banimento da Rússia dos Jogos Olímpicos de Inverno pela
prática de “doping de estado” é um sério revés para o governo do presidente
Vladimir Putin, que já enfrenta a grave acusação de tentar influenciar
indevidamente os resultados das eleições presidenciais na França e nos Estados
Unidos por meio do apoio a empresas propagadoras de fake news que
operam em seu país.
Evidentemente, Moscou nega qualquer envolvimento nos
resultados apurados pelo COI. Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, lançou
dúvidas sobre as descobertas. “Elas não têm base”, disse.
Existe um ditado entre os atletas profissionais que diz,
em uma tradução livre, que “somente os otários são pegos no exame antidoping”.
Com o banimento da Rússia, o COI resgata não só a dignidade de todos os atletas
que competem honestamente e espantam o mundo com a sua habilidade e capacidade
física, fruto de treinamento e disciplina, mas também os valores olímpicos que
inspiraram sua criação.
*Publicado no Portal Estadão em 20/12/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário