O saneamento básico
e a
iniciativa privada
Entre os indicadores que
mostram o quão distante o Brasil está de ser uma nação desenvolvida, um dos
mais impactantes é a baixa cobertura de saneamento básico. Em um país onde
quase todos os domicílios têm geladeira e telefone, pouco menos de dois em cada
dez brasileiros ainda não têm acesso a água tratada, e apenas metade da
população (52,6%, mais precisamente) tem esgoto coletado – ainda por cima,
daquilo que é coletado, apenas 46% são tratados. São números que evoluíram
pouco recentemente, mostrando que será impossível chegar à meta de 100% de
coleta de esgoto em 2033, objetivo estipulado seis anos atrás no Plano Nacional
de Saneamento.
A média nacional camufla
realidades ainda mais dramáticas, pois, enquanto há unidades da Federação onde
70% da população ou mais tem o esgoto coletado, como Paraná, São Paulo, Rio de
Janeiro e Distrito Federal, em vários outros os índices estão abaixo de 10%.
Mesmo na Região Sul, há bolsões de precariedade que puxam os indicadores para
baixo, caso de Santa Catarina (23%) e Rio Grande do Sul (31%). No índice de
tratamento do esgoto coletado, apenas o Distrito Federal (84%) supera os 75%.
A regulamentação atual sobre o saneamento
básico tem
sido incapaz de garantir este que é
um direito básico da população
Quando parte significativa
da população não tem acesso à infraestrutura de saneamento básico, as
consequências são graves. Há reflexos na saúde pública, graças à proliferação
de doenças que poderiam ser evitadas pela mera existência de um sistema de
coleta e tratamento de esgoto; e danos ambientais, pela degradação e
contaminação de áreas onde os dejetos não são coletados, sendo lançados
impunemente no solo, em rios e nos mares. É com razão que o ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, costuma citar a falta do saneamento como um problema
que merece tanta atenção quanto a preservação de ecossistemas florestais,
fluviais ou marítimos. E os números mostram que a regulamentação atual sobre o
tema tem sido incapaz de garantir este que é um direito básico da população.
Nos últimos dias de seu
mandato, em dezembro de 2018, Michel Temer publicou uma medida provisória que
alterava o marco legal do saneamento. A MP acabou caducando no Congresso, mas
àquela altura ficou claro que o tema precisava ser discutido, dando origem a dois
projetos de lei. Um deles, o PL 3.261/19, foi rapidamente aprovado no Senado em
junho. A Câmara, no entanto, deu preferência ao PL 4.162/19, enviado pelo
governo de Jair Bolsonaro. O texto-base foi aprovado na última quarta-feira,
dia 11, e a discussão de destaques deve terminar nos próximos dias, ainda antes
do recesso parlamentar.
O novo marco regulatório
prevê um papel maior para a iniciativa privada na oferta de serviços de água e
esgoto, pois empresas particulares poderão participar das licitações que se
tornarão obrigatórias um ano depois da aprovação da nova regulamentação –
atualmente, o poder público pode celebrar contratos com estatais sem
necessidade de concorrência. É verdade que, por trás dos bons índices de
estados como São Paulo e Paraná, existem empresas de economia mista sob
controle estatal (respectivamente, Sabesp e Sanepar). No entanto, sem a
participação forte da iniciativa privada será impossível chegar aos R$ 20
bilhões anuais em investimento necessários para se atingir a meta de
universalização. O novo marco regulatório não exclui a participação das
empresas públicas, mas as obrigará a serem eficientes e deixa espaço para uma
série de arranjos possíveis entre governos e empresas, inclusive com a
possibilidade de consórcios intermunicipais, assim como já ocorre na prestação
de outros serviços à população.
Apesar dos benefícios
evidentes e já verificados da entrada da iniciativa privada em outras áreas,
como infraestrutura viária, aeroportos, telecomunicações e energia, continua a
haver muitas resistências à abertura do setor de saneamento básico ao
investimento privado e à concorrência, seja pela convicção estatista de parte
da oposição ao governo, seja por interesses monopolistas de alguns dos atuais
responsáveis pela oferta dos serviços. Manter a situação atual, no entanto, é
continuar condenando boa parte da população a uma vida precária por décadas,
pois, no ritmo atual da expansão da rede, a universalização só viria em 2060,
segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria. Recusar-se a usar todas
as armas disponíveis para combater uma vergonha nacional é um luxo ao qual o
Brasil não pode se dar.
Gazeta do Povo - 15.12.2019
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