O abuso de autoridade e a
retaliação da bancada da impunidade
No mesmo dia em que os
deputados federais aprovaram a MP da Liberdade Econômica, os parlamentares
resolveram amarrar juízes, membros do Ministério Público, policiais e vários
outros agentes públicos ao aprovar, sem nenhuma discussão, um nefasto projeto
de lei sobre abuso de autoridade que já havia passado pelo Senado em 2017.
Nefasto não porque seja desnecessário coibir abusos, que existem e precisam ser
combatidos, mas porque o texto aprovado deixa inúmeras brechas abertas para a
retaliação de réus e investigados contra os que os investigam, acusam e
condenam.
O simples fato de os
deputados terem se escondido, recorrendo à votação simbólica em vez da votação
nominal, já demonstra as intenções nada republicanas daqueles que gostariam de
ver o texto aprovado. A única pista que o cidadão e eleitor pode ter são os nomes
dos que aprovaram o requerimento para que o PL 7.596/17 tramitasse em regime de
urgência, dispensando a análise nas comissões da Câmara. Esquerda, Centrão e
até partidos mais à direita irmanaram-se no apoio à votação-relâmpago do
projeto. Louvem-se algumas exceções: o PSL, partido do presidente Jair
Bolsonaro, até liberou a bancada, mas seus deputados votaram maciçamente contra
a urgência (41 a 4); ampla maioria das bancadas do Patriota e do Cidadania
também votou “não”; e o Novo foi o único partido a orientar formalmente a
bancada, além de ter apresentado requerimentos (todos derrotados, infelizmente)
pedindo votação nominal e análise artigo a artigo do projeto, para tentar dar
alguma transparência ao processo.
O texto aprovado pela
Câmara não é a lei
que a sociedade brasileira esperava; é apenas
a resposta da
bancada da impunidade à Lava Jato
O texto votado, apesar de
vir com o nome do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), era obra dos também
senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Roberto Requião (MDB-PR, que não se
reelegeu em 2018). Havia dois projetos na casa: o 280/16, de Calheiros,
altamente revanchista e arbitrário, e o 85/17, de Rodrigues, sensato e
construído em conjunto com o Ministério Público. Eles passaram a tramitar
juntos, e o relator Requião manteve o número do projeto “bom”, o de Rodrigues,
mas colocou nele, basicamente, o texto de Calheiros, jogando fora o trabalho do
senador da Rede. As versões iniciais eram tão absurdas que instituíam até mesmo
o “crime de hermenêutica”, dando margem a processos contra juízes que tivessem
suas decisões revertidas em instâncias superiores. Requião resistiu, mas acabou
polindo as versões seguintes. O projeto aprovado pelo Senado e remetido à
Câmara não incluíam o “crime de hermenêutica”, mas manteve uma série de
expressões deliberadamente vagas.
O truque adotado tanto no
Senado quanto na Câmara, onde o relator foi o deputado Ricardo Barros (PP-PR),
foi misturar condutas que realmente configuram abuso de autoridade – como
manter na mesma cela presos de ambos os sexos, ou impedir o contato entre o
preso e seu advogado – com outras definições que dão margem à interpretação. O
que é, por exemplo, uma condução coercitiva “manifestamente descabida”? Como
saber se uma investigação está sendo “injustificadamente” estendida? Mesmo uma
situação real e condenável, que ocorre quando um magistrado pede vista de um
processo e demora a devolvê-lo, se torna crime de abuso de autoridade quando o
juiz se demorar “demasiada e injustificadamente”, sem que o projeto defina exatamente
o que isso signifique.
Além disso, o texto que os
deputados aprovaram define (corretamente) o crime de abuso de autoridade como
de ação penal pública – ou seja, quem tem de oferecer a denúncia é o Ministério
Público. No entanto, o projeto admite a ação penal privada se o MP não agir
dentro de um determinado prazo. Isso significa que um condenado, réu ou
investigado poderá processar policiais, juízes, membros do MP e outras
autoridades. Seria a legalização da represália contra agentes da lei.
Muitos deputados
defenderam o PL 7.596/17 como uma alternativa melhor que o outro projeto sobre
o mesmo tema que tramita no Congresso – aquele que resultou da destruição das
Dez Medidas Contra a Corrupção, e que inclui aberrações como uma mordaça contra
membros do MP, impedidos de exercer plenamente seu direito à liberdade de
expressão. Mesmo assim, o texto aprovado pela Câmara nesta quarta-feira não é a
lei de abuso de autoridade que a sociedade brasileira esperava; é apenas a
resposta dada pela bancada da impunidade aos avanços que operações como a Lava
Jato trouxeram para o país.
O presidente Jair
Bolsonaro tem 15 dias para sancionar o texto, e o ministro Sergio Moro já
recomendou o veto de alguns trechos problemáticos, mesma demanda feita pelo
PSL. De fato, uma tesoura bem criteriosa pode retirar as piores partes do
projeto, devolvendo-as ao Congresso; Bolsonaro não pode ter receio de usá-la.
Gazeta do Povo
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