O Supremo em crise de identidade
Com frequência aceitamos alguns desvios da legalidade
constitucional porque não visualizamos, de imediato, suas consequências
negativas.
No caso do inquérito aberto pelo presidente do STF, nem
isso. As consequências eram claras e não tardaram a surgir.
A instauração de um inquérito de ofício, sem indicação
precisa dos fatos que seriam investigados – para além da menção a genéricos
“ataques ao STF” –, criou uma situação que desafia qualquer noção de Estado de
Direito.
O STF parece ter, agora, prerrogativa universal de
investigar qualquer ato que possa, ainda que remotamente, ser entendido como
“ofensivo” à Corte – mesmo que nada tenha a ver com aquilo que justificou a
instauração do inquérito.
Ainda pior: sob pretexto de “ataques ao Supremo”, tudo
vai se tornando passível de ser incluído no vago inquérito – desde ataques e
vazamentos coordenados, até atos de legítimo exercício da atividade
jornalística.
O mais perigoso, contudo, é que o STF é, ao mesmo tempo,
i) o autor da denúncia; ii) o responsável pela investigação; iii) quem decide
os fatos relacionados à investigação; iv) quem determina atos judicias no curso
da investigação; v) quem define o escopo da investigação.
Em resumo: ele diz o que pode e o que será investigado;
como será investigado; o que será feito na investigação; quais as
responsabilidades decorrentes; quem será punido e como será punido.
É um caso inequívoco de atuação de ofício do Tribunal,
abarcando desde atos investigatórios até atos decisórios, sem qualquer mediação
e – ainda mais grave – sem nenhum controle externo ou superior.
Se ainda resta alguma dúvida do absurdo em que consiste a
decisão contra a revista eletrônica Crusoé e o site O Antagonista, pergunte-se:
a quem eles poderão recorrer contra a decisão do Ministro Alexandre de Moraes?
Aos demais Ministros do STF que, aparentemente, concordaram com a investigação?
Não há controle nem defesa em face de um tribunal que
atua ao mesmo tempo como investigador, acusador e juiz. Com base num obscuro
ponto regimental e de constitucionalidade duvidosa, o STF, de guardião das
garantias individuais, tornou-se um violador impune dessas garantias.
No momento em que o Supremo poderia – e deveria –
resgatar sua própria reputação, resguardando-se da crise política e atuando
como freio aos demais poderes, ele próprio se adianta e se convida para a festa
de violações a direitos individuais e garantias constitucionais.
Com uma pequena diferença: quem irá controlá-lo? A quem
só detém a caneta, a única coisa que lhe resta, além de sua posição institucional,
é a legitimidade derivada, em parte, de sua própria reputação e imagem.
Se perder isso, o que restará?
Horácio Neiva
Advogado e filósofo do direito
Gazeta do Povo
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