O debate sobre a reforma da Previdência contribuiu para
mostrar à população a discrepância dos regimes previdenciários do servidor
público e do trabalhador da iniciativa privada. Há, no País, uma classe de
privilegiados, que desfruta de facilidades e condições inacessíveis à maioria
da população. Os privilégios, no entanto, não se restringem às aposentadorias e
pensões. O problema é mais amplo e mais arraigado. São décadas de pressão
política de parte do funcionalismo público, com o objetivo de incorporar continuamente
novos benefícios para sua turma.
Não foi obra de amadores essa captura do Estado para
interesses corporativos e pessoais. É gente que conhece o riscado, ágil em
vincular suas manobras a dispositivos legais. Sua tática é assegurar um caráter
de legalidade aos privilégios de que desfrutam, como meio de perpetuar suas
práticas.
Recentemente, veio à tona mais um caso escandaloso. A
Eletrobrás e a Eletropaulo chegaram a um entendimento sobre uma antiga disputa
judicial, relativa a um empréstimo feito à distribuidora paulista em 1986. No
acordo, estabeleceu-se que a Eletropaulo deverá pagar à Eletrobrás R$ 1,4
bilhão, dividido em cinco parcelas ao longo de 48 meses.
O pacto contém, no entanto, um pequeno detalhe. Os
advogados da Eletrobrás asseguraram no acordo que eles deverão receber da
Eletropaulo R$ 100 milhões a título de honorários de sucumbência. Ou seja, os
advogados da estatal receberam, durante todo o processo, seus respectivos
salários – o trabalho realizado foi devidamente remunerado – e ainda
conseguiram acrescentar, na assinatura do acordo, um generoso cachê adicional.
Esse tipo de manobra perverte o sentido dos honorários de
sucumbência. Se é cabível algum ressarcimento em função de todo o processo
judicial, quem merece essa indenização é a Eletrobrás, que teve sua equipe
jurídica ocupada por tanto tempo com essa demanda. Foi a empresa estatal que
sofreu os danos e os riscos do processo judicial.
Até algum tempo atrás, não havia dúvidas sobre esse
ponto. Por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou vasta
jurisprudência no sentido de que “a titularidade dos honorários advocatícios de
sucumbência, quando vencedora a Administração Pública direta da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou as autarquias, as fundações
instituídas pelo Poder Público, ou as empresas públicas, ou as sociedades de
economia mista, não constituem direito autônomo do procurador judicial, porque
integram o patrimônio público da entidade”.
Esse respeito à coisa pública foi abalroado, no entanto,
pelo intenso lobby de algumas corporações públicas. Na redação do novo Código
de Processo Civil (Lei 13.105/2015), incluiu-se um parágrafo – o casuístico §
19 do artigo que regula os honorários – para dizer que “os advogados públicos
perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei”.
A confirmar a força das corporações, já no ano seguinte,
em 2016, foi aprovada a Lei 13.327, que regulamentou os honorários de
sucumbência das carreiras públicas. Fixou-se, por exemplo, que os honorários
devem ser distribuídos também entre os funcionários inativos. Não se vê
qualquer menção a critério de rateio por mérito, produtividade ou eficiência.
“Os valores dos honorários devidos serão calculados segundo o tempo de efetivo
exercício no cargo, para os ativos, e pelo tempo de aposentadoria, para os
inativos”, diz o art. 31.
Também foi criado um Conselho Curador dos Honorários
Advocatícios, para, entre outras funções, “adotar as providências necessárias
para que os honorários advocatícios (...) sejam creditados pontualmente”. Não
falta diligência na defesa dos interesses da esperta rapaziada.
Os R$ 100 milhões de honorários para os advogados da
Eletrobrás lembram a tremenda injustiça dessa legislação enviesada, que de
forma tão desavergonhada repassa o que é público a alguns poucos. É preciso dar
fim, o quanto antes, também a esse privilégio.
*Publicado no Portal do jornal Estadão em 13/03/2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário