Salvo-conduto para o crime*
A proposta de lei sobre abuso de autoridade em tramitação
no Congresso tem a marca indelével de vingança corporativista contra a Operação
Lava-Jato. São palpáveis as digitais de líderes do PMDB, PSDB, PT, PP, PR e de
outros partidos envolvidos, em níveis variados, nas investigações sobre
corrupção e lavagem de dinheiro em contratos de obras públicas federais e
estaduais.
Sob o pretexto de aperfeiçoar mecanismos de defesa da
sociedade contra abusos de agentes públicos, pretende-se, de fato, manietar a
Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal nos inquéritos em que
políticos com e sem mandato apareçam como suspeitos.
A receita é conhecida.
Foi aplicada com relativo êxito na Itália, nos anos 90 do século passado, para
desestruturar investigações da Operação Mãos Limpas que expôs a a corrupção
endêmica no Legislativo, Executivo e também no Judiciário.
Um bom projeto de lei
contra abusos de autoridade estaria em sintonia, primordialmente, com a vida
real dos habitantes das áreas urbanas detentoras dos maiores índices de
violência policial. Seria adequado ao país do “você sabe com quem está
falando?” e da carteirada, de que se valem tanto a polícia, que invade
residências sem mandado judicial e assassina escudada nos chamados autos de
resistência, como também representantes do Judiciário e do Ministério Público,
hoje sob escrutínio da sociedade. Não é o caso da proposta em andamento no
Congresso.
Ela faz parte, sim, de um pacote legislativo com objetivo
central de instituir uma espécie de salvo-conduto para a criminalidade
política. Há uma miríade de iniciativas nessa direção na Câmara e no Senado.
Uma das mais recentes
teve origem na bancada petista e tem como alvo o desmonte do instituto da
colaboração, ou delação, premiada — instrumento sem o qual dificilmente a
Lava-Jato existiria. Entre outros aspectos polêmicos, esse projeto do PT limita
até mesmo o direito de defesa — que é constitucionalmente garantido — dos
eventuais candidatos à colaboração com a Justiça.
Os projetos de lei
sobre abuso de autoridade e de desmonte das colaborações premiadas pertencem à
categoria de propostas legislativas aberrantes e, como tal, não podem e não
deveriam prosperar no Legislativo, que tem um terço dos parlamentares em papel
de destaque nos inquéritos conduzidos pelo Supremo Tribunal Federal.
Isso é legislar em causa própria. Contraria o interesse
público, inclusive na publicidade dos atos judiciais. Também, configura ameaça
às normas republicanas de atuação do Judiciário, Ministério Público e polícia.
Argumentos sobre um suposto “Estado policial” ou “regime
de exceção” são pífios, por óbvio. Sua repetição apenas expõe fragilidades na
defesa de interesses indisfarçáveis, por vezes inconfessáveis, que acabam
convergindo para a preservação da marginalidade política.
*Publicado no Portal do jornal O Globo em 26/12/2017
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