quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

➤OPINIÃO

O apelo patético de Marco Aurélio

Luiz Maklouf Carvalho

Nunca se viu, na história do Supremo Tribunal Federal, um apelo tão patético ao espírito de corpo como o feito pelo ministro Marco Aurélio Mello na tensa sessão plenária da última quarta-feira, 7 - a que manteve o resiliente Renan Calheiros (PMDB-AL) na presidência do Senado. Depois de citar, um a um, os nomes dos oito ministros que iriam votar a seguir, enumeração inédita, Marco Aurélio os instou, dramaticamente, a que o acompanhassem na liminar contra o inimigo jurado daquele momento. "Que cada qual, senhor de uma biografia, senhor da busca pelo fortalecimento do Supremo como poder maior, cumpra o dever de prestar contas à história", disse, no final da primeira parte da sessão.

"Foi forte", comentou o advogado Daniel Sarmento durante o intervalo. Ele foi o primeiro a ser chamado à tribuna, como representante do partido Rede, para defender a liminar em que Marco Aurélio destituía Calheiros do posto senatorial. O outro advogado chamado, Alberto Cascais, defendeu o senador alagoano e a mesa do Senado, que, em dribles sucessivos, se recusaram a assinar a intimação da liminar do ministro, classificada de "surpresa extrema". Cascais cascateou. "Jamais o Senado teve a intenção de desafiar esta Corte. Jamais!". Pediu a cassação integral da liminar marcoaureliana, e pôs na roda o segredo de polichinelo que já circulava desde a véspera nos bastidores: a alternativa de afastar Calheiros apenas da linha sucessória da Presidência da República, de resto pacífica, já que foi declarado réu, deixando-o em paz na presidência do Senado pelas poucas últimas semanas que restam.

Foi a vez do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Seu rosto avermelhado faz um contraste curioso com os cabelos brancos que cobrem metade da testa. Craque nos superlativos - como José Dias, o agregado de "Dom Casmurro" - Janot usa "relevantíssima", "nobilíssima", e que tais, com naturalíssima abundância. Estava indignado, como Marco Aurélio, com as fintas do senador no oficial de justiça - "dribles sucessivos, registrados e certificados", carimbou. Era o segundo registro à foto de Dida Sampaio, deste Estado, que registrou a presença de Calheiros na residência oficial em que mandou dizer que não estava. Janot não citou o nome do fotógrafo, mas Marco Aurélio o fez. A foto pode virar uma prova, se for em frente o pedido de criminalização da recusa a receber a intimação, feito por Marco Aurélio a Janot.

Ao final de sua peroração, criticando o desprezo pela liminar, o procurador-geral ofereceu uma variação da frase já famosa de sua sabatina no Senado Federal de Renan Calheiros: "Pau que dá em Chico, tem que dar em Francisco".

O Francisco do momento era Calheiros - e Marco Aurélio pegou o bastão. "O Senado é o senador Renan Calheiros", ironizou. "Quanto poder!". Olhando para a presidente, ministra Cármen Lúcia, tripudiou: "Que se faça justiça ao senador Renan Calheiros. Ele não me chamou de juizeco". O alvo do diminutivo foi, recentemente, o juiz de primeira instância Vallisney de Souza Oliveira, por ter autorizado a prisão de agentes da polícia do Senado e a apreensão de documentos e equipamentos. Cármen Lúcia subiu nas tamancas, de pronto, o que levou Calheiros a se desculpar. Não houve a mesma determinação ao desrespeitoso comentário do senador, na véspera, sobre o tremor que sacode a alma de Marco Aurélio quando ouve falar em supersalários. O ministro não fez referência à ofensa - até aqui não retirada pelo presidente do Senado.

Depois do sarcasmo - ou da picardia, como prefere - Marco Aurélio passou ao voto propriamente dito. Mais do que defender tecnicamente sua liminar - onde foi perfunctório, data máxima vênia - esmerou-se nos adjetivos contra a recusa em recebê-la: "triste exemplo", atitude "inconcebível, intolerável, grotesca" contra o Supremo Tribunal Federal. Classificou a solução intermediária de Cascais - deixar Calheiros na presidência do Senado - como "famoso jeitinho brasileiro" e "meia sola constitucional". Arrematou dizendo que não podia prevalecer uma "visão acomodadora", e clamando, dramaticamente, pela adesão solidária dos colegas de toga, alguns deles por muitos anos.

Na volta do intervalo-merenda - que a ministra Cármen Lúcia está conseguindo disciplinar em meia hora - a sessão ofereceu uma surpresa: o ministro com mais tempo na casa, o respeitado decano Celso de Mello, quase sempre o penúltimo a votar, foi o primeiro a fazê-lo. E, mais importante, o primeiro a dissentir do apelo corporativo de Marco Aurélio. Celso de Mello abriu a divergência, como se diz por ali, e, a par de muitos elogios ao segundo mais velho da Corte, não avalizou a liminar que mandava destituir Renan da presidência do Senado. "Fui o primeiro apenas para desfazer um equívoco no voto anterior", explicou o decano, apoiado na bengala que o ajuda a administrar os problemas na coluna, na paciente coletiva que concedeu depois da sessão, recheada de expressões em latim. Desfeito o equívoco, e expressa a divergência, fora da ordem cotidiana da tomada de voto, restou a constatação de que o decano ignorou por completo o apelo emocional, colocando a questão técnica da legalidade da liminar acima do espírito de corpo que Marco Aurélio pretendia fazer prevalecer.

O mais novo do Tribunal, ministro Edson Fachin, é quase sempre o primeiro a votar. Foi o segundo - e somou com Marco Aurélio. Teori Zavascki, a seguir, acompanhou a divergência do decano. Foi dele a farpa afiada "às críticas pejorativas de caráter pessoal, em que juízes tecem comentários sobre decisões de outros juízes" - entendida como uma referência ao Grande Ausente da sessão, no caso o ministro Gilmar Mendes, que no dia anterior, em viagem pela Europa, a trabalho, desancou a liminar de Marco Aurélio, no mérito, ameaçando até com impeachment, por "crime de responsabilidade", como jamais se viu. (O outro ausente, embora presente, foi o ministro Luís Roberto Barroso. Como estava impedido de votar - o advogado da Rede é de seu antigo escritório - entrou mudo e saiu calado).

Dias Toffoli, com uma urgente reunião em andamento, também furou a ordem de votação. Somou com a divergência de Mello, e foi o único a não fazer qualquer elogio a Marco Aurélio. Talvez pela pressa em retirar-se, talvez pela encrenca de dias atrás, em que o responsabilizou por atraso no repasse de um processo em que pedira vista, - justo o que discute se réu em ação penal no STF, como o presidente do Senado, pode estar na linha sucessória da presidência da República. Marco Aurélio não aceitou a crítica, dizendo que o processo estava virtualmente disponível, era só acessar.

A próxima a votar, ministra Rosa Weber, ficou com Marco Aurélio. Empate de 3 a 3 - sepultado pelos próximos três votos que seguiram o decano: Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Os dois primeiros, fartos em encômios ao colega na berlinda, trituraram a sustentação técnica da liminar. A presidente Cármen Lúcia, fechou o placar, a seu estilo. Depois dos elogios a Marco Aurélio, falou em "prudência, convívio mais fácil, busca do consenso em benefício do Brasil". Citou, com senso de oportunidade, o recém-falecido poeta Ferreira Gullar: "Uma parte de mim é permanente/outra parte se sabe de repente". Marco Aurélio saiu carregado de solidariedade retórica. Do que realmente queria - a confirmação de seu poder, em momento de arroubo emocional - não levou nem o cheiro. A sessão mostrou que a Corte ferve por dentro. Um dia explode, que deus nos livre.

*Publicado no Portal do Jornal Estadão em 08/12/2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário