terça-feira, 5 de novembro de 2013

Artigo

Quem tem medo de ser biografado?
Ou como o Lira Neto me deixou com comichão?

César Cabral*

Acho essa história de biografias autorizadas e não  autorizadas uma das mais chatas matérias que hora tomam conta da imprensa no Brasil. Prefiro outros assuntos, porém, às vezes acabo me enxerindo onde não sou chamado porque tenho opinião formada sobre o assunto. Não sei se isso interessa, mas pode servir de debate como quase tudo hoje em dias de internete.
Uma biografia autorizada só é publicada depois que o biografado, se vivo, ou seus descendentes, lerem toda a obra, e fizerem modificações. Essas poderão seguir o caminho que eles bem entenderem; ou amenizar e até suprimir acontecimentos, fatos, dados e sei lá mais o que, ou acrescentar o que mais interessa e dourar a pílula. Além disso, os biógrafos não são contratados e bem pagos para falar mal do biografado e nem tratar de assuntos digamos...constrangedores.
As biografias não autorizadas podem ser mais verdadeiras. Todavia é fundamental que o autor tenha provas e comprove o que escreveu; acho-as mais confiáveis embora não tenha nenhum interesse em ler biografia de, sobretudo, quem ainda está vivo e anda por aí podendo alterar tudo o que foi escrito; basta desmentir o biógrafo.
Prefiro historiadores, pesquisadores; acadêmicos dedicados à busca do fato histórico sem paixões e deduções sem provas. Essas biografias são, entre outras obras, mais uma fonte para compreender a sociedade, suas transformações no tempo, aumentando assim o nosso entendimento da história de civilizações, de povos de organizações políticas, sociais e religiosas.
Não li o primeiro livro que Lira Neto escreveu sobre Getúlio Vargas, nem o segundo e nem lerei o terceiro. Tenho melhores e mais confiáveis informações a respeito da vida e da obra de um dos mais importantes presidentes do Brasil. Para não citar muitos autores, apenas a obra de Boris Fausto já seria suficiente. Porém sendo gaúcho e tendo vivido, ainda que muito jovem, os últimos dias de Getúlio e acompanhado como testemunha o “quebra-quebra” que os vândalos e aproveitadores daquela época promoveram na cidade; e depois o que se seguiu daí pra frente na política brasileira, é que despertou-me atenção à exagerada cobertura da imprensa sobre a tal biografia que escreveu o jornalista e biografo Lira Neto.
Eu mesmo não sei se fiquei mais exigente ou mais chato com o passar dos anos. Há quem diga que estou é mais pra chato; outros, dizem que estou ranzinza. Meu médico acupunturista, que trata de tudo sem remédios, mas apenas com agulhas, me aconselha a “pegar mais leve” e apreciar com moderação meus vinhos chilenos e meus escoceses adolescentes; mas já que não entendo como alguém pode “apreciar” alguma coisa com moderação – não imagino como apreciar uma paisagem ou um livro, com moderação! - sigo bebendo-os “a meu gosto”, como se diz no Rio Grande.
Lira Neto, jornalista, resolveu escrever biografias e vem se dando bem; boas edições e dinheiro, faço votos, desde Castelo Branco, Maiza, Padre Cícero e agora Getulio.
Não li e nem pretendo ler nenhuma dessas biografias; os personagens não me interessam, exceção a Getulio Vargas, mas sobre este tenho coisa melhor, como já disse. Digo melhor mesmo sem ter lido o livro dele sobre Getulio, porque o que li a respeito, no artigo publicado na Folha de São Paulo em 26/07/2012, reproduzindo trechos do livro, e pelas duas entrevistas que ele deu falando do conteúdo do livro; na GloboNews, já me bastam.

Entre coisas estranhíssimas sobre o Rio Grande ele disse e escreveu que, com esse trabalho de pesquisa sobre Getulio, descobriu que existem muitas semelhanças entre os gaúchos e os cearenses. Seria bom se não fossem tolices. Destacou como idênticos o “machismo”; que
é uma atitude de intolerância de certos homens para com as mulheres, e não o que ele entende que seja. Ele interpreta o que diz ter percebido em suas andanças por São Borja que cearenses e gaúchos são machistas; segundo engano de quem acha que acertou no que não
viu, pois ele confunde machismo com a bravura histórica dos gaúchos a lutar por quase 300 anos pelas terras que acreditavam já ter dono; há isso se dá o nome de macheza, modos e atitude de macho. E disse que ambos, gaúchos e cearenses, têm o mesmo espírito (se não foi essa a palavra, foi com o mesmo sentido) “de vingança, de lavar a honra com sangue por qualquer motivo” (!?).
Pela lança de meu Sepé Tiaraju!!!! Valei-me Padim Ciço dele!!! De onde ele tirou isso?
É o que dá escrever as orelhadas, como fez José de Alencar, conterrâneo do Lira Neto, com O Gaúcho sem nunca ter estado no Rio Grande do Sul. O livro é engraçadíssimo - mais do que atores da Globo falando como nordestinos, como em Gabriela, ou, como gaúchos, em O Tempo e o Vento. Esses escritores e biógrafos devem ter pensado que dá pra fazer como fizeram Edgar Rice Burroughs, que escreveu Tarzan sem nunca ter estado na África, como Willian Shakespeare, que escreveu Coriolano sem ter estado na Roma do século IV a.C., ou Giuseppe Verde, que compôs Ainda sem nunca ter estado na Etiópia e no Egito dos Faraós. Bom, mas aí já é outra coisa. E outra gente.
O Lira Neto de deixou buzina da vida. Então recolhi alguns trechos das bobagens e do péssimo texto dele.Escreve ele em seu livro Getúlio, que os jantares do Gegê, como o chamava meu pai, quando recebia personalidade estrangeiras eram “comilanças pantagruélicas”, tentando aludir ao glutão Pantagruel de Rabelais; possivelmente. Escreve ele que Getúlio “impressionava os convidados pela enorme quantidade de proteína animal que conseguia ingerir de UMA SÓ VEZ”; e que esse fato era “herança da infância e da juventude”. Escreve ele que Getulio “foi INICIADO no ritual de abater e carnear o boi, para depois sentar em volta do fogo com os companheiros de estância e observar o lento crepitar das brasas e das chamas conferindo cor, aroma e sabor às fibras sangrentas, sorvidas na forma de nacos fumegantes.”; botando na boca do escritor Pedro Vergara, uma explicação ridícula sobre o churrasco. Escreve ele que “Darcy, a primeira dama, reservava para o marido o osso em forma de forquilha do peito da galinha. Os filhos já sabiam que
saborear a carne branca que envolvia o ossinho era um dos prazeres prediletos do pai à mesa”. Não explicar numa biografia sobre essa, digamos, preferência de Getulio “pelo ossinho em forma de forquilha” sem definir o porquê desse habito, como se faz e pra que é que serve, torna-se apenas um dado tolo, sem sentido, e irrelevante na narrativa. Escreve ele que Getulio “todas as noites, para fazer o "quilo", gostava de sair CAMINHANDO A PÉ (caminhar a pé deve ser uma proeza e tanto!) pela praia do Flamengo, com seu característico paletó de linho branco e o par de sapatos bicolores, deixando atrás de si um rastro de baforadas no ar”. “Fazer o quilo”, uma expressão digna de Machado de Assis e do tempo dele, vá lá. Agora escrever uma CAMINHADA A PÉ e ainda mais com UM PAR de sapatos, deve ser uma façanha; e das mais relevantes. Escreve ele que “o hábito de fumar charutos - os de sua predileção eram os da marca Soberano e Mil e Uma Noites - também provinha da mocidade. Nas prateleiras da pequena biblioteca particular do jovem acadêmico de direito Getúlio Vargas, as páginas dos livros de Nietzsche,
Darwin, Saint-Simon, Zola, Euclides da Cunha e Aluísio
Azevedo, então seus autores favoritos, recendiam a tabaco e, também, a ERVA MATE MOIDA”. Escreve ele que “o chimarrão, como não poderia deixar de ser, era outra das paixões do gauchíssimo Getúlio. Por vezes, despachava com ministros e auxiliares de cuia na mão, a BOMBILHA de prata nos lábios.” Que tal?
Tudo isso é ridículo, patético. Pobre biografia do Pai dos Pobres, elogiada e glorificada pela imprensa e pela crítica literária brasilina; pobre literatura. E isso é apenas um trechinho do primeiro livro de uma trilogia. Não quero ler esse livro; parece escrito com o “português” do Paulo Coelho, de quem li dois livros apenas, a duras penas, durante a última edição da minha “Semana da Bondade” há três décadas.
Acho mesmo que o tempo me tornou chato e ranzinza pra certas coisas. Porém, intolerante ainda não. Escrever sobre a vida privada e pública e sobre o legado do mais famoso presidente da república não se faz com meia dúzia de informações e nem mesmo com um milhão delas. É pouco pra contar a história política de quem foi ditador por 15 anos e depois eleito presidente, democraticamente, para um mandato que exerceu por 3 anos apenas se não tivesse resolvido "sair da vida para entrar para a história" com um tiro no peito. Também é preciso muito mais para contar a história de um homem que viveu 72 anos num país agrícola, subdesenvolvido, cobiçado por nazistas alemães, fascistas italianos,
integralistas brasileiros e por norte americanos de boa vontade por quase uma década. É natural que certos assuntos ocupem grandes espaços nas mídias disponíveis e qualquer pessoa manifeste sua opinião sobre qualquer coisa. Os tempos de hoje são assim. É o que está acontecendo, portanto temos total liberdade de expressão. Mas a questão chave não é outra senão o entendimento do significado de liberdade.
Há quem entenda que liberdade é “eu posso tudo”. A liberdade é mais restritiva as atividades dos indivíduos do parece, pois suas regras são rígidas, claras e definitivas.
Para Spinoza o filosofo, ser livre significa agir de acordo com sua natureza. Schopenhauer entende que a ação humana não é livre. O iluminista Rousseau entendia que o coletivo é mais importante do que o indivíduo. Portanto o homem atinge apenas um certo grau de liberdade se abrir mão dela visando o bem comum.Já Emmanuel Kant acreditava que o cidadão livre é o co-legislador. Aquele que obedece as suas próprias leis.
No século XXI liberdade é um conceito ainda mais complexo, sobretudo quando se trata de liberdade de expressão, como já me referi, com a quantidade de meios disponíveis para pôr à vista o que se pensa e o que se faz.
Outra questão é liberdade de expressão da imprensa.
Nunca acreditei na existência de liberdade, como direito absoluto de expressão na imprensa já que jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão têm suas regras, seus interesses e seus donos; a liberdade de imprensa é kantiana.
Todavia existem tantas outras liberdades, todas reguladas pelas leis do Estado que se comparadas entrarão em choque; serão anacrônicas, desumanas, inaceitáveis e até mesmo engraçadas e patéticas. Portanto não comparemos o que é liberdade para um esquimó com o que nós brasilinos entendemos sobre direitos de expressão, de ir e vir, de propriedade, de privacidade e outras mais.
E é privacidade o que se discute na questão das biografias e não liberdade de expressão. É se o biografado autoriza ou não expor sua privacidade. Acho que ninguém vivo deve ser biografado; só depois de morto e de já ter se passado alguns anos, que não sei quantos devem ser.
Biografia não tem que ser autorizada, esse pretenso gênero literário tão discutido e produzido as baciadas sobretudo nos EUA onde, em geral, os biografados são pessoas de fama e notoriedade, artistas populares que seus fãs e seguidores sabem mais detalhes de suas vidas que eles mesmos e ainda pode-se escolher qual se quer ler entre 15, 20 autores diferentes do mesmo biografado.Pessoalmente não me interessa se Caetano Veloso comeu manga com febre na juventude ou se Getúlio Vargas sorvia um mate amargo a seu gosto e comia Aimée, mulher de seu Chefe de Gabinete. Se John Kennedy comeu ou não Marilyn Monroe e que outros serviços a estagiária Monica Lewinsky oferecia ao presidente Bill Clinton. Nada é mais óbvio, e irrelevante, que um gaúcho beba seu chimarrão onde bem lhe aprouver; assunto sem nenhuma importância numa biografia.
Se o melhor caminho para o fim da discussão é a conversa entre biógrafo e biografado, como agora sugere Roberto Carlos , o gênero biografia deixa de assumir uma responsabilidade para com o verdade, que não deve anular a imaginação, pois o biógrafo transforma simples informação em obra impressa, em livro/produto, inventando ou suprimindo material cria um determinado efeito e falha na verdade. Se contentar-se com o relato dos fatos, falha na arte literária. A tarefa biográfica, se entendida como tarefa artística, produzida sob essa tensão conceitual, demarca uma cronologia pondo em evidência certos padrões de comportamento que a obra confere dando forma e significado à vida do biografado.
Bio grafia não é obra feita para agradar leitores e nem para massagear o ego do biografado.
Deve ser livre, construída sob fatos, ser verdadeira e sem autorização de quem que seja deve ser escrita após a morte do biografado. Nesse caso o trabalho do biógrafo será estafante (que palavra!) e verdadeiro já que as biografias autorizadas de “famosos” são apenas enormes reportagens em formato de livro.O debate atual, inútil e vazio de interesse de leitores, se dá entre notórios artistas populares, possíveis biografados desejosos de assentar um marco para além tumulo; a frente de sua obra consagrada por uma ou mais gerações – caso raro - mas que já estão a margem dos limites dos gostos, dos hábitos e dos costumes de um outro público em uma outra época.
Não precisamos de uma lei para regular mais esse assunto. O Código Civil Brasileiro, jovem e atual com seus mais de 2 mil artigos “regula as relações jurídicas de ordem privada”, e basta. “Uma informação, seja através de livro ou filme, pode ser proibida se atingir a honra, a boa fama ou a respeitabilidade”; esse é o artigo 20 que quase arranha o direito de liberdade de expressão.
Portanto quem se sentir prejudicado que acorra ao Código.
 Será que se eu me meter a escrever biografias de bandidos terei que pedir autorização ao Fernandinho Beira Mar se resolver escrever a biografia dele? Sem autorização dele poderei ser processado e a biografia ser proibida por “atingir, a honra, a boa fama e respeitabilidade” desse senhor?
Divido com Duque, o cartunista, a mesma inquietação: “sendo assim o neto do Lobo Mau pode proibir uma biografia contando que seu avo comeu a vovozinha.”

*Jornalista e escritor

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