segunda-feira, 16 de dezembro de 2019



O que “destrói empresas” não
é a Lava Jato, mas a corrupção
A longa série “A Lava Jato foi boa para o país, mas...”, em que se acrescenta nas reticências qualquer tipo de mal ou irregularidade para denegrir a operação, ganhou um novo capítulo nesta segunda-feira, por cortesia do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli. Desta vez, a ressalva foi a de que a operação “destruiu empresas”, com o acréscimo, por parte do magistrado, de que “isso jamais aconteceria nos Estados Unidos. Jamais aconteceu na Alemanha. Nos Estados Unidos tem empresário com prisão perpétua, porque lá é possível, mas a empresa dele sobreviveu”.

Não chega a ser um argumento novo. Já foi usado pela ex-presidente Dilma Rousseff e por vários de seus ministros, que jogaram nas costas da Lava Jato até mesmo a culpa pela pior recessão da história do país. Em julho de 2015, durante reunião ministerial, Dilma afirmou que a Lava Jato havia reduzido o Produto Interno Bruto nacional em 1% – o que equivaleria a pouco mais de R$ 50 bilhões, em valores da época. No mês seguinte, em audiência na Câmara dos Deputados, Aloizio Mercadante, então ministro-chefe da Casa Civil, falou em um impacto de até 3,5% do PIB, citando estudos feitos por consultorias. Este impacto consistiria especialmente na redução de investimentos, seja da Petrobras, seja de todas as empreiteiras envolvidas no esquema desvendado pela Lava Jato.

Não é a Lava Jato que destrói empresas, 
mas a opção de seus donos pela corrupção, 
punida com a correta aplicação da lei

Em primeiro lugar, é mais que óbvio que não haveria impacto algum se todos os atores tivessem agido com honestidade. Nem na Alemanha, nem nos Estados Unidos – para usar os exemplos de Toffoli – houve um esquema como o petrolão, em que o governo aparelhou uma empresa estatal e usou seus contratos para colocar em funcionamento um esquema bilionário de propinas com o objetivo de fraudar a democracia e perpetuar um projeto partidário de poder. E, se houve o esquema, a melhor coisa que poderia ter ocorrido ao país foi a sua descoberta, graças ao trabalho de instituições como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, permitindo que a sociedade conhecesse em detalhes como o Brasil foi saqueado e quem foram os responsáveis por isso. A alternativa, é claro, seria que tudo continuasse funcionando nas sombras, com todos os investimentos fluindo da forma prevista – bem como as propinas.

E, se também as empresas, e não apenas os empresários, sofreram as consequências do fato de a Lava Jato terem desmontado o esquema de propinas, isso se deu porque as leis do país assim o determinam – principalmente a Lei de Licitações e a Lei Anticorrupção, esta última sancionada em 2013 por Dilma. Toffoli deveria saber disso, pois, quando deu seu voto decisivo para derrubar a prisão após condenação em segunda instância (o que, aliás, levaria à soltura de alguns empreiteiros pegos pela Lava Jato), alegou justamente a soberania do povo exercida por meio de seus representantes, que teriam aprovado a redação atual do Código de Processo Penal. Ora, o que vale para o CPP também vale para a Lei de Licitações e a Lei Anticorrupção.

Assim, a crítica de Toffoli simplesmente não procede. Não é a Lava Jato que destrói empresas, mas a opção de seus donos pela corrupção, punida com a correta aplicação de uma lei devidamente aprovada pelo Congresso Nacional. Pode-se questionar se a estratégia de castigar também as empresas, quando elas estão implicadas em escândalos de corrupção, é razoável. Mas, se uma companhia colabora, por meio de seus donos e executivos, para defraudar o governo, nada mais natural que essa empresa sofra as sanções previstas na legislação, como multas e a declaração de inidoneidade, que a impede de celebrar novos contratos com o poder público – foi o que ocorreu, por exemplo, com a alemã Siemens, condenada a pagar pesadas multas em seu país de origem por um esquema descoberto em 2007 e que ficou proibida de participar de licitações do Banco Europeu de Investimentos até 2014. Além disso, no caso brasileiro, a legislação também contempla maneiras de as pessoas jurídicas mitigarem as punições aplicadas, por meio da cooperação com os órgãos de investigação.

Neste caso – e em muitas outras acusações injustamente lançadas contra a Lava Jato – não existe “mas”. De fato, obras foram interrompidas, brasileiros perderam seus empregos, e algumas empreiteiras envolvidas no esquema realmente enfrentam dificuldades, estando em recuperação judicial. Mas a Lava Jato nem de longe é a causa desse estado de coisas; afirmar o contrário, como acabou de fazer o presidente do STF, é errar completamente o alvo. É como culpar quem abre as janelas pela imundície no quarto, quando na verdade a luz do sol, nas célebres palavras de Louis Brandeis – também ele um membro de suprema corte, no caso a norte-americana – não é a causa da sujeira, mas sim “o melhor desinfetante”.

Gazeta do Povo – 16.12.2019

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