Um choque de realismo
Forçar uma discussão de
problemas vitais quase sempre mantidos sob o tapete é o primeiro mérito, e o
mais visível, do pacote de reformas entregue ao Congresso pelo governo. Não se
poderá mais ignorar, por exemplo, a situação aberrante de mais de mil
municípios incapazes de cobrir um mínimo de seus gastos com recursos próprios.
Não mais se poderá encarar como normal um dos maiores absurdos da administração
pública, a proibição de reduzir gastos com pessoal em fases de grave crise nas
finanças oficiais. Além disso, será mais difícil continuar brincando de
federação em um país onde o Tesouro Nacional está a postos, sempre ou quase
sempre, para socorrer governos estaduais irresponsáveis. Dificilmente se
impedirá a eliminação ou distorção de pontos importantes das três propostas de
emenda constitucional (PECs) apresentadas terça-feira. Mas, feito o jogo,
recuar poderá ser muito custoso.
Haverá ganhos de
racionalidade e eficiência mesmo com aprovação parcial do pacote. Com a criação
do estado de emergência fiscal, a administração poderá desindexar despesas
obrigatórias e diminuir jornada de trabalho de servidores, com redução
proporcional de salários. Além disso, a chamada PEC Emergencial permitirá
incluir no Orçamento medidas para adequação à regra de ouro (proibição de tomar
empréstimos para cobrir custeio) e suspender por dois anos promoções de
funcionários (com exceções) e concessão de reajustes.
Além de maior
flexibilidade para enfrentar crises, os três níveis de governo poderão dispor
de orçamentos menos engessados. Este problema vem sendo discutido, sem
resultado, desde os primeiros anos da Constituição aprovada em 1988.
Vinculações de verbas dificultam enormemente, há muito tempo, a administração
das finanças públicas brasileiras. Os casos mais notáveis são os da educação e
da saúde. Governantes são obrigados a aplicar nessas áreas determinadas
porcentagens da receita, mas nem por isso os padrões de qualidade são tão bons
quanto poderiam ser nessas duas áreas.
A mera obrigação de gastar
dispensa os administradores de planejar e de justificar tecnicamente suas
despesas. Ao contrário: as vinculações têm dificultado a fixação de prioridades
e favorecido o desperdício e a corrupção.
Autorizados a juntar os
valores mínimos destinados à educação e à saúde, os gestores poderão distribuir
os gastos com maior liberdade entre os dois setores, mais de acordo com as
condições e necessidades de cada um e segundo as prioridades fixadas para cada
período. A solução mais ampla e mais favorável à racionalização da despesa
eliminaria qualquer resquício de vinculação. O orçamento público ficaria bem
mais funcional, mais adequado a um exercício permanente de planejamento e mais
propício à adequação dos programas aos meios disponíveis.
Mesmo com ampla reforma,
despesas incontornáveis continuarão predominantes no orçamento público, no
Brasil ou em qualquer país com tolerável organização. Construir uma escola ou
um hospital pode ser um ato de liberdade, mas a partir daí o governo tem de
manter as novas instalações em funcionamento. Investimento gera custeio, como
sabe qualquer pessoa razoavelmente informada. Mas pode-se manter o avanço do
gasto obrigatório em ritmo compatível com o crescimento da economia e da
receita fiscal. A reforma da Previdência é um passo para isso, assim como a
desindexação de despesas e a eliminação de vinculações.
A criação do Conselho
Fiscal da República, composto de representantes da União, dos Estados e dos
municípios, poderá contribuir para a consolidação de um novo sentido de
responsabilidade na gestão das finanças públicas. É uma novidade promissora,
mas a disciplina vai depender, em primeiro lugar, da imposição de regras como a
proibição de socorro a governos estaduais irresponsáveis pela União.
As três propostas de
emendas constitucionais podem ter defeitos, mas sua tramitação será dificultada
mais provavelmente por seus aspectos mais positivos. Será mais um teste para os
congressistas e para o núcleo político do Executivo.
Jornal Estado de São Paulo
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