Abuso de autoridade: a
mordaça passa pelo Senado
Qualquer esperança que o brasileiro pudesse ter na possibilidade de melhoria substancial no projeto que combina o que sobrou das Dez Medidas Contra a Corrupção e dispositivos intencionalmente vagos que punem o abuso de autoridade naufragou antes mesmo que o texto fosse votado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e no plenário do Senado, nesta quarta-feira. Na noite de segunda-feira, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), disse, em evento promovido pelo site Poder360, que, se as supostas conversas atribuídas ao ex-juiz e hoje ministro Sergio Moro tivessem sido protagonizadas por um “deputado ou senador, tava no Conselho de Ética, tava cassado ou tava preso”. Ora, não se pode dizer que Alcolumbre ignore as acusações reais que pesam contra muitos de seus colegas, que nem foram cassados nem estão presos – um deles, mesmo condenado, está de malas prontas para férias no Caribe –, restando apenas a possibilidade de que o presidente do Senado considere as “não ilegalidades” dos diálogos algo mais grave que as fichas corridas de vários parlamentares, em uma grosseira inversão moral.
E, de onde pouco se
esperava, efetivamente pouco saiu. O relator Rodrigo Pacheco (DEM-MG) até
acolheu algumas emendas que buscavam retirar trechos mal redigidos do projeto –
caíram, por exemplo, os incisos que consideravam abuso de autoridade “ser
patentemente desidioso no cumprimento de suas atribuições” e “proceder de modo
incompatível com a dignidade e o decoro do cargo”, tanto para juízes quanto
para membros do Ministério Público. No entanto, permaneceram no texto a
possibilidade de represália do ofendido, movendo ação contra seus
investigadores ou julgadores, bem como outras definições vagas que podem ser
torcidas para nelas encaixar qualquer coisa – caso da “motivação
político-eleitoral”, que a defesa de Lula já invocava contra Sergio Moro até
mesmo antes de o então juiz responsável pela Lava Jato ter se tornado ministro
de Jair Bolsonaro. E os membros do MP tiveram sua liberdade de expressão quase
que totalmente tolhida pelo inciso que torna abuso de autoridade “expressar,
por qualquer meio de comunicação, juízo de valor indevido sobre procedimento ou
processo”, reservando-lhes apenas os autos do processo, obras técnicas ou o
exercício do magistério para se manifestarem. O conceito do que é considerado
“indevido”, já podemos imaginar, também será objeto de um generoso alargamento
– este, sim, certamente indevido.
Curiosamente, nenhum
senador quis o bônus de ter
votado a favor de um texto
considerado por eles tão bom
E, por mais que o discurso
reinante fosse o de que os trechos sobre abuso de autoridade haviam sido
substancialmente melhorados, curiosamente nenhum senador quis o bônus de ter
votado a favor de um texto considerado tão bom: enquanto a parte do projeto
referente às antigas Dez Medidas foi aprovada por 19 votos a 3 na CCJ, os
artigos 8.º e 9.º, que tratam do abuso de autoridade, tiveram votação
simbólica, em que ninguém tem seu voto oficialmente registrado para a
posteridade. No plenário, ocorreu o mesmo, com os trechos referentes ao tema
sendo votados separadamente de forma simbólica, em que apenas os contrários ao
texto se manifestaram nominalmente.
Justiça seja feita, tanto
durante a sessão da CCJ, pela manhã, quanto no plenário, no fim da tarde e à
noite, houve senadores corajosos, apontando o erro que o Senado cometia ao
endossar a manobra da Câmara dos Deputados, que desfigurou as Dez Medidas e
incluiu nelas o “jabuti” do abuso de autoridade – para esses parlamentares,
seria o caso de tratar do assunto em um projeto separado. Também sobraram
críticas ao próprio conteúdo dos artigos 8.º e 9.º, ressaltando a preocupação
com a imprecisão dos termos e a porta aberta para a retaliação contra juízes e
promotores. Nada disso, no entanto, moveu nem o relator, nem Alcolumbre, nem os
demais senadores que apoiaram o texto.
Como os senadores
alteraram o texto vindo da Câmara, o projeto de lei volta para os deputados,
que terão de aprová-lo de novo. Se quiserem colocar a mordaça em vigor o quanto
antes, não farão mudanças no texto, até porque a versão vinda do Senado não
chega a contrariar o espírito das "emendas da meia-noite". Neste
caso, só restará o poder de veto do presidente Jair Bolsonaro para impedir que
juízes e procuradores comecem a se tornar vítimas de perseguição por parte de investigados,
réus e condenados.
Gazeta do Povo – 27.06.2019
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