O desabafo de Bolsonaro
Foto: Gazeta do Povo/Reprodução |
Na manhã de sexta-feira, o
presidente Jair Bolsonaro divulgou, em grupos de WhatsApp dos quais faz parte,
um texto atribuído a um autor anônimo – depois identificado como Paulo
Portinho, analista da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e filiado ao Partido
Novo – que descreve as dificuldades que Bolsonaro vem encontrando para governar
e para implantar as plataformas de campanha que a população escolheu em outubro
de 2018. Um diagnóstico extremamente preocupante, menos pelo quadro deprimente
que pinta e mais porque ele mostra uma compreensão bastante equivocada do jogo
democrático e do que significa governar – e nos permite perguntar até que ponto
o próprio Bolsonaro compartilha desse equívoco, apesar de suas décadas de
experiência como parlamentar.
O texto, cuja íntegra
também foi publicada pela Gazeta do Povo, tem todo um tom de denúncia contra o
que Portinho chama de “corporações com acesso privilegiado ao orçamento
público”, e que seriam as verdadeiras donas do país: “não só políticos, mas
servidores-sindicalistas, sindicalistas de toga e grupos empresariais bem
posicionados nas teias de poder”. A constatação é a de que qualquer presidente
teria de se dobrar a esses grupos; sempre foi, é e sempre será assim, parece
dizer o autor.
Está aqui o primeiro grande
equívoco sobre como funciona uma democracia. Por esta visão, existiria apenas o
povo, puro, imaculado, que deseja o melhor para o país, e, do outro lado,
grupos de pressão com interesses sempre espúrios, que desejam apenas o melhor
para si mesmos. Um erro primário e que desconsidera a própria dinâmica da
democracia, que se constrói no embate civilizado entre interesses diversos e,
na imensa maioria das vezes, legítimos. Quando um grupo de pessoas se une para
defender uma ideia ou pleitear algo junto ao poder público, apresentando seus
argumentos e elegendo representantes que deem força a essas ideias e
plataformas, nada mais faz que colocar em funcionamento a máquina da
democracia. É assim não apenas no Brasil, mas em qualquer país democrático.
Se o Brasil realmente não
é para principiantes,
tampouco é ingovernável sem ceder às corporações
Existem interesses e
métodos espúrios? Sem dúvida que há. Quando políticos vendem sua consciência e
seus votos em troca de cargos e privilégios, quando empresários se unem em
esquemas de corrupção, estamos diante do quadro pintado pelo autor anônimo do
texto compartilhado por Bolsonaro. Mas, quando servidores públicos se opõem a
reformas que julgam prejudiciais, quando setores do empresariado pleiteiam
determinada medida que os beneficie, até mesmo quando estudantes invadem uma
escola para protestar contra alguma mudança no sistema educacional, as ideias
podem estar equivocadas, as medidas que beneficiam alguns podem acabar
prejudicando a maioria, os métodos podem ser profundamente condenáveis e
antidemocráticos, mas não se pode, de forma alguma, igualar suas motivações às
do primeiro grupo, como se todos agissem movidos apenas por razões
inconfessáveis.
Ao colocar todos os grupos
e interesses em um mesmo balaio, Bolsonaro desmente a própria trajetória e
antagoniza até mesmo aqueles que o ajudaram a fazer dele o presidente do país.
Quando buscou o apoio de bancadas temáticas para construir apoio parlamentar,
logo depois da eleição, não estava lidando com pessoas unidas por uma
plataforma? Quando assina importantes e necessárias medidas que tiram a carga
estatal dos ombros do empreendedor, não está também respondendo a um pleito da
parte de quem produz? E não são esses interesses totalmente legítimos, e até
meritórios?
Mas não é apenas sobre a
própria natureza dos interesses que movem a política que o desabafo
compartilhado por Bolsonaro se equivoca. O presidente também parece ter
subestimado a reação que ele despertaria. Bolsonaro se elegeu com uma série de
plataformas necessárias ao país – as reformas econômicas, a redução do tamanho
do Estado e de sua interferência sobre a vida do cidadão e do empreendedor, a
proteção da vida e da família, o combate à criminalidade. Prometeu também levar
esse ideário adiante sem recorrer ao toma-lá-dá-cá que marcou os governos de
seus antecessores. A própria campanha eleitoral já havia mostrado que haveria
resistências vindas de todos os lados – da imprensa, da intelectualidade, de
grupos políticos, ideológicos e identitários – a esse projeto. Uma oposição
legítima, baseadas em ideias e reivindicações próprias da democracia, e também
a resistência espúria de quem perderia privilégios. Porventura Bolsonaro não
imaginava que os setores contrários ao seu programa não usariam todas as armas à
disposição? Se agora ele se queixa, como o texto parece fazer, do tamanho do
desafio, é porque o subestimou grosseiramente, mesmo quando tudo já indicava
que sua tarefa não seria nada simples e apesar de Bolsonaro ter passado boa
parte de sua vida no mesmo Congresso que agora lhe impõe dificuldades.
E, diante disso, o que
fazer? Como, então, manter a coerência com o programa assumido nas urnas – algo
que o texto de Portinho alega não ser possível, usando exemplos de FHC, Lula e
Dilma? Menos mal que o autor rejeite a opção da ruptura institucional, com “o
Brasil sendo zerado”. Isso nos levaria a um destino como o de vizinhos falidos,
citando a Argentina e a Venezuela. O autor poderia ter citado o próprio caso
brasileiro, em que Jânio Quadros quis contornar as instituições confiando nos
“braços do povo”, e acabou lançando o país na confusão que resultou no golpe
militar de 1964. Mas Portinho também não vê saída. Segundo o texto, se a
ruptura não é um caminho possível nem desejável, restaria apenas conformar-se
com governar contentando os grupos de pressão de sempre, passando reformas
cosméticas que manterão o país respirando por aparelhos, mas sem de fato mudar
o Brasil.
Ora, isso é de uma
pequenez impressionante. Se o Brasil realmente não é para principiantes, como
na famosa frase atribuída a Tom Jobim, tampouco é ingovernável sem ceder às
corporações, como defende Portinho. É possível, sim, governar sem recorrer aos
conchavos e ao toma-lá-dá-cá. Para isso, o que o Brasil exige de um governante
é sabedoria para compreender que uma democracia é movida por interesses
legítimos, mesmo que opostos; sagacidade para identificar quais são os
interesses e métodos espúrios; coragem para enfrentar os interesseiros e
fisiológicos; e liderança para conversar e negociar com todos os demais,
aqueles que se movem de boa vontade no tabuleiro político e ideológico. São
características que ainda não se manifestaram plenamente em Bolsonaro, que tem
se guiado pelo pensamento binário em que as únicas opções são ceder ou buscar o
enfrentamento com todas as forças contrárias. Tampouco seus ministros
responsáveis pela articulação política e suas lideranças no Congresso parecem
capazes de cumprir suas tarefas a contento, suprindo o que falta em seu chefe.
O ideário que elegeu
Bolsonaro tem o potencial de mudar o Brasil. E pode ser colocado em prática,
desde que o presidente pare de reclamar das dificuldades e resistências – que
são grandes, sim, mas nunca foram desconhecidas de ninguém – e comece a agir com
a liderança que a população espera dele.
Gazeta do Povo
Editorial 20/05/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário