A força das corporações
A decisão do presidente
Michel Temer de sancionar o reajuste de 16,38% nos vencimentos dos ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) – que terá amplo impacto na folha de pagamentos
do conjunto do funcionalismo – mostra que mesmo um governo com evidente compromisso
com o equilíbrio das contas públicas não consegue conter a força das
corporações. Este mesmo governo, que provou sua responsabilidade ao aprovar um
teto para os gastos públicos, ao controlar a inflação e os juros e ao tentar
por todos os meios viabilizar uma reforma da Previdência, havia sido igualmente
incapaz de barrar um aumento salarial para o funcionalismo público pouco depois
que Temer assumiu o lugar da presidente cassada Dilma Rousseff, em maio de
2016. Ou seja, há uma classe de brasileiros, com amplo acesso ao poder, para a
qual não valem as medidas que exigem o sacrifício da maioria da população, nem
mesmo diante das gritantes limitações fiscais.
No caso do reajuste dado
no início de seu governo, Temer ainda podia argumentar que se tratava de um
compromisso assumido pelo governo de Dilma e que não poderia ser rompido. Já no
caso do aumento de salário concedido ao Judiciário a pouco mais de um mês do
fim de seu mandato, Temer contrariou os pareceres da área econômica do governo
e ignorou a evidente inconstitucionalidade da medida, que aumenta a remuneração
dos ministros do Supremo sem autorização específica na Lei de Diretrizes
Orçamentárias. Ademais, o reajuste desrespeita o teto legal de gastos, pois no
projeto que o concedeu não há avaliação sobre o impacto orçamentário,
igualmente obrigatório. Em outras palavras, Temer tinha todos os elementos
necessários para vetar o reajuste, mas não o fez porque foi incapaz de fazer
frente ao formidável condomínio de interesses privados de uma das mais
poderosas corporações hoje em atuação no Brasil.
O mais estarrecedor em
toda essa história é o fato de que uma medida tão escandalosamente ilegal tenha
sido articulada a partir do STF – instituição cuja função é justamente zelar
pelo estrito cumprimento da Constituição –, contando com a cumplicidade do
Congresso, que deveria ter mais cuidado com a coisa pública, já que ali se
reúnem os representantes dos contribuintes que sustentam o Estado. Ou seja, as
corporações se combinaram para desvirtuar instituições democráticas, atropelar
a Constituição e arrancar do Erário a renda a que julgam ter direito.
Assim que o aumento foi
aprovado por Temer, o ministro Luiz Fux, do STF, suspendeu a absurda liminar
por ele mesmo concedida em 2014, para
estender o auxílio-moradia a todos os magistrados e membros do Ministério
Público do País, medida que, na prática, havia majorado os salários dos juízes,
promotores e procuradores sem qualquer discussão orçamentária. Em resumo, tudo
não passou de um vergonhoso toma lá dá cá, no qual o Judiciário inventou um
auxílio-moradia irrestrito para arrancar um reajuste salarial.
Sem qualquer
constrangimento, o ministro Fux disse que decidiu sustar a liminar porque, “no
atual estado das coisas, impõe-se ao Poder Judiciário o estabelecimento de
parâmetros que assegurem o ajuste fiscal das contas públicas”, pois “o
equilíbrio e a ordem nas contas estatais são imprescindíveis para assegurar a
continuidade de serviços públicos dignos a gerações futuras”.
Nem é preciso dizer que o
equilíbrio das contas públicas jamais foi a preocupação dos sindicalistas
togados, interessados somente em ampliar os seus já absurdos privilégios, em um
país com mais de 12 milhões de desempregados.
Para o País, resta a
sensação de que há duas Constituições: uma, que impõe limites para a maioria
dos brasileiros, e outra, feita sob medida para atender as poderosas guildas de
servidores públicos. É como escreveu o ministro Fux: “A Constituição é um
documento vivo, em constante processo de significação e de ressignificação,
cujo conteúdo se concretiza a partir das valorações atribuídas pela cultura
política a que ela pretende ser responsiva. Por sua vez, tais valorações são
mutáveis, consoante as circunstâncias políticas, sociais e econômicas, o que
repercute diretamente no modo como o juiz traduz os conflitos do plano prático
para o plano jurídico, e vice-versa”.
Portal ESTADÃO