Se o voluntarismo judicial gera uma grave distorção no
sistema jurídico, ao fazer com que os efeitos da lei não sejam expressão apenas
da vontade do Congresso – mas também da particular vontade de juízes –, ele se
torna ainda mais prejudicial na hora de aplicar a Constituição. É o que se tem
visto em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que tantas vezes dizem
exatamente o contrário daquilo que está expresso nos artigos da Carta Magna.
A Constituição é a lei de maior hierarquia no País. Todas
as outras leis devem estar em conformidade com o seu conteúdo. Se o conteúdo
constitucional está sujeito a um tratamento fluido, que não respeita a
literalidade do texto, todo o sistema jurídico é afetado pela instabilidade e
insegurança. Já não existe critério seguro, sendo tudo passível de uma nova e
criativa interpretação.
Não resta dúvida de que, às vezes, é preciso fazer uma
aplicação sistêmica da lei, corrigindo eventuais omissões e contradições. Tal
necessidade, no entanto, não autoriza a desprezar o que o legislador
constituinte escreveu. Em geral, as interpretações contrárias ao texto
constitucional não se baseiam numa avaliação global do ordenamento jurídico, de
modo a conferir-lhe maior unidade. Ocorre justamente o oposto. O que se vê são
discordâncias pessoais em relação ao texto legal que levam a interpretações
casuísticas, sem nenhuma consistência sistêmica, e que produzem outras e
maiores contradições.
Sempre houve uma margem subjetiva na aplicação da lei. O
problema é que, atualmente, se perdeu a reverência pelo texto constitucional.
Muitos juízes reivindicam para si liberdade total para interpretar a lei,
rejeitando qualquer limite objetivo nessa tarefa. Tornam-se soberanos com
poderes absolutos.
Como é óbvio, tal lógica confere um poder excessivo ao Judiciário,
que teria a faculdade de atribuir à lei o sentido que mais lhe convém.
Raríssimas vezes o sentido dado à lei por esses juízes todo-poderosos guarda
alguma relação com o texto aprovado pelo Congresso – esse, sim, o locus da
soberania.
Quando se discutem essas questões, é frequente tratar o
STF com condescendência. Por ser o tribunal de maior hierarquia no Judiciário,
diz-se que ele teria o direito a errar por último. Ou ainda que a Constituição
não seria o que está escrito no livrinho, mas aquilo que o STF define como
sendo a Constituição.
A posição hierárquica do STF confere-lhe, não há dúvida,
uma enorme responsabilidade. Mas esta é a responsabilidade de ser fiel ao texto
constitucional, não a de ditá-lo como quiser. Sua missão institucional é ser o
guardião da Carta Magna. Assim, é um equívoco achar que, por ser a Corte mais
alta, o Supremo teria total liberdade interpretativa ou que não precisaria
respeitar os limites expressos no texto.
O STF tem o dever de ser exemplo a todo o Judiciário, em especial
de respeito ao texto definido pela Assembleia Constituinte. Num Estado
Democrático de Direito, não cabem interpretações judiciais que desautorizam o
texto constitucional. Os ministros do STF não são árbitros da Constituição. Há
juízes, por exemplo, que agem como se fosse da alçada da Suprema Corte retirar
vigência de parte do texto constitucional por considerá-lo incompatível com o
sentimento atual da população. Agindo assim, os ministros do STF assumem o
papel que ninguém lhes outorgou – o de serem oráculos da vontade da população.
A Constituição não é aquilo que o Supremo diz ser. É a
Constituição que define o que o Supremo deve ser e como deve se portar. Por
exemplo, não cabe aos ministros do STF ponderar se devem respeitar as
competências privativas do Congresso Nacional. Não há situação, por mais
excepcional que seja, que justifique ultrapassar os limites de cada Poder.
A Carta Magna de 1988 tem muitos defeitos e compete ao
Congresso corrigi-los. Mas não se encontra no texto constitucional o disparate
de estabelecer que o País será regido pela vontade de 11 ministros, que não
receberam nenhum voto popular. Numa República vale a lei – não a arrogância de
seu intérprete.
Publicado no portal do jornal Estado de São Paulo em
07/05/2018
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