O irrealismo do STF*
O ministro Fux esqueceu, porém, que, numa democracia
representativa – como é a brasileira –, a vontade popular
se manifesta prioritariamente por meio do Congresso Nacional
Incomodados com as críticas relativas à lentidão dos
processos penais no Supremo Tribunal Federal (STF), alguns dos ministros
togados têm clamado por realismo na avaliação da Suprema Corte. Seria injusto –
dizem eles – comparar a velocidade processual de um juízo de primeira instância
com a de um tribunal constitucional. Na prática, pedem que o trabalho do STF
não seja avaliado tão somente pelo crivo da Constituição – que lhe atribui
competência tanto para questões constitucionais como para alguns casos penais,
em razão do foro privilegiado, além de ser um órgão recursal –, e sim por um
olhar que leve em conta as circunstâncias concretas do trabalho dos ministros.
Esse realismo, que tanto querem os ministros da Suprema
Corte, não é aplicado, no entanto, em algumas decisões do STF sobre o trabalho
dos outros Poderes. Exemplo dessa incongruência foi a decisão, em dezembro do
ano passado, do ministro Luiz Fux interrompendo a tramitação do projeto de lei
com as Dez Medidas Anticorrupção, sob o argumento de que a Câmara não havia
respeitado o rito próprio das leis de iniciativa popular. Em vez de ir ao
Senado, o projeto devia voltar à Câmara, onde fora aprovado com emendas.
Liminarmente, o ministro Fux criou uma regra e mandou o
Congresso segui-la, ainda que isso significasse ignorar o voto dos deputados.
Na lógica da decisão, o que o ministro achava devia prevalecer sobre a vontade
da Câmara.
Naturalmente, a decisão liminar do ministro – que,
aparentemente insatisfeito com o trabalho que lhe corresponde, como se lhe
parecesse pouco, se dedica também a assuntos reservados ao Legislativo – causou
uma enorme confusão. Simplesmente, o Senado e a Câmara não sabiam o que fazer
diante da disjuntiva de desrespeitar a decisão de Fux ou desrespeitar o voto
dos deputados.
Na sexta-feira passada, foi anunciado o desfecho do
impasse: a Secretaria-Geral da Mesa da Câmara vai conferir os mais de 2 milhões
de assinaturas de apoio à proposta de iniciativa popular e, depois disso, o
projeto poderá ser enviado ao Senado.Certamente, o Congresso tem mais a fazer
do que conferir todas as assinaturas. No entanto, diante da extravagante
decisão de Fux, o melhor mesmo talvez seja conferir uma por uma as assinaturas,
checando minuciosamente sua validade, leve isso o tempo que levar e custe o que
custar. Assim, ficarão ainda mais evidentes as perniciosas consequências da
interferência do Judiciário em temas que só cabem ao Legislativo. A liminar de
Fux entrará para os anais do Congresso como uma decisão absolutamente
irrealista, cujo único efeito prático foi postergar o processo legislativo.
Além de irrealista, a decisão de Fux padece de um grave
erro conceitual. Na lógica da liminar, um projeto de lei de iniciativa popular
não poderia sofrer alterações, sob o risco de desvirtuar a vontade da
população. Ao Congresso caberia apenas aprová-lo ou rejeitá-lo. Como os
deputados fizeram alterações no texto original, o projeto das Dez Medidas
deveria retornar à Câmara para que fosse tramitado corretamente, em sua versão
inicial.
O ministro Fux esqueceu, porém, que, numa democracia
representativa – como é a brasileira –, a vontade popular se manifesta
prioritariamente por meio do Congresso Nacional. Os deputados e os senadores
eleitos representam de fato e de direito a totalidade da população, ou “o
povo”, como diz a tradição democrática. Certamente, o apoio de 2 milhões de
assinaturas a um projeto de lei tem um peso político, mas trata-se de um
equívoco grave presumir que a vontade da sociedade está fielmente expressa naquelas
assinaturas.
Ao proibir o Congresso de fazer emendas num projeto de
lei apoiado por 2 milhões de assinaturas, o ministro Fux calou a voz de mais de
140 milhões de eleitores – conforme dados do TSE –, que não foram ouvidos
durante a colheita das assinaturas e que, segundo a liminar, já não poderão
mais falar por meio de seus representantes.
Ainda que possa ser celebrada em algum palanque
populista, a contraposição entre vontade popular e vontade parlamentar é sempre
uma medida contra a democracia. Ao STF não cabe, portanto, incentivá-la.
*Publicado no Portal Estadão em 23/02/2017
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