Os anos dourados na Praça da Alfândega
Adeli Sell*
Quem cruza
hoje pela Praça da Alfândega - ainda em reforma – não deve imaginar que no
local onde estão as duas pomposas sedes do Banrisul e Caixa Econômica Federal
houve um boteco e point de encontro para prostitutas que ficavam por ali nos
fundos da Sete de Setembro.
Os cinemas
da redondeza aglutinavam multidões nas noites e especialmente nos finais de
semana. E tinha a Matheus, sim a Confeitaria, que depois se mudou para a
Borges e parou por ali. E é claro o espaço mais chique e badalado da cidade: o
Clube do Comércio, onde os bailes de debutantes eram ‘o acontecimento’ e seus
convites eram disputados a tapa.
Isto e
muito mais você vai encontrar no livreto ‘Os anos dourados na Praça da
Alfândega’, editado em 1994, pela Artes e Ofícios, de autoria de José Rafael
Rosito Coiro. Já falecido, sabia escrever como poucos. Foi um grande professor
de Biologia no Julinho e contribuiu enormemente para a área acadêmica da UFRGS,
escrevendo artigos e contos de ficção científica.
Se você
sabe pouco sobre os anos 50, 60 e 70 em Porto Alegre e quer entender a época,
os costumes, os valores, a leitura é obrigatória. A publicação conta histórias
de figurinhas carimbadas da vida noturna da cidade. As histórias de personagens
conhecidos no Brasil inteiro misturam-se com figuras anônimas que frequentaram
o ambiente da Praça, revelando o rico cotidiano de uma cidade que se esforça para
não esquecer seu passado.
O
preconceito era brutal contra "gaúcho", especialmente aquele que
vinha com sotaque de interior e vestia traje tradicional. Hoje o que
aplaudimos, naquela época era motivo de chistes e agressões. Coitada das
"bicha" como eram chamados os homossexuais de então. Alguns furaram
bloqueios e se juntaram a turma de boas vidas, de boêmios, de provocadores
ingênuos (às vezes nem tanto) do Coiro ali na frente do Clube do Comércio. O
China Gorda é um bom exemplo, conhecido também pelos seus dotes culinários.
E quem não
conheceu ou não ouviu falar da grande jornalista e dama avant guarde Gilda
Marinho, que morava no Edifício do Clube do Comércio. Há um relato marcante de
como ela dobrou a conservadora sociedade gaúcha. Era de uma genialidade ímpar e
sabia curtir a vida como ninguém. Dizem que o galante prefeito Loureiro da
Silva - não está no livro - tinha uma paixão por ela.
Mas quero
voltar ao grosso do conteúdo destes anos dourados, de como era a vida dos
adolescentes, a sua iniciação sexual, a relação com os cabarés - frequentados,
muitas vezes, apenas para dançar e beber. Como era penoso para as moças de
então que tinham que conservar a virgindade para casar e não serem mal faladas.
Tem relatos
incríveis sobre os metidos da época, os endinheirados e esnobes, cujas famílias
não souberam fazer os filhos pensar e trabalhar (e às vezes, estudar), caindo
na decadência financeira. Os idosos há muitos anos são os donos desta
Praça, e reforço não é ruim. Mas perdemos muitas personagens fantásticas e
esquisitas, sobrou muito corre-corre, vendedores ilegais, sujeira e árvores mal
cuidadas.
Com este
relato rendo minha homenagem ao autor e aos que povoaram a Praça, sonharam e
viveram esta Porto Alegre, que merece ser resgatada, para podermos fazê-la
melhor.
*Escritor e
consultor
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