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Uma página das mais
lamentáveis da história da magistratura brasileira foi escrita nesta terça-feira,
quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski ameaçou
de prisão, dentro de um avião, um advogado que fez críticas à corte suprema. A
maneira como o magistrado se portou diante das críticas de Cristiano Caiado de
Acioli no voo entre os aeroportos de Congonhas (SP) e Brasília (DF) foi, na
menos grave das hipóteses, arbitrária; na pior delas, terá sido uma
ilegalidade, se não um crime.
As cenas foram registradas
em vídeo, com a crítica de Acioli ( “Ministro Lewandowski, o Supremo é uma
vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando eu vejo vocês...”) e
a ameaça do magistrado, que pergunta: “Vem cá, você quer ser preso?”.
O ministro nem precisa elevar o tom de voz; o próprio teor do que diz já é
suficientemente esclarecedor a respeito do que Lewandowski pretende. E aqui
começa o arbítrio: Acioli seria preso pelo quê? Afinal, seu comportamento não
colocava em risco a segurança do voo, nem das demais pessoas a bordo. Seria por
exercer sua liberdade de expressão ao criticar o Supremo? A nota emitida pelo
gabinete de Lewandowski na noite de terça-feira fala em uma suposta “injúria ao
Supremo Tribunal Federal”, algo que não tem o menor fundamento, levando-se em
consideração as palavras usadas por Acioli.
Ameaçado de ser preso sem
motivo, Acioli descobriria, ao fim do voo, que o arbítrio o continuaria
perseguindo. Em uma das versões publicadas pela imprensa, um servidor técnico
judiciário entrou na aeronave e manteve Acioli dentro dela até que todos os
demais desembarcassem, sem dizer ao advogado por que ele estava sendo retido;
em outra versão, Acioli foi abordado pela Polícia Federal no saguão de
desembarque do aeroporto brasiliense. Independentemente do que ocorreu logo
após o pouso, o fato é que Acioli foi levado à Superintendência Regional da
Polícia Federal para “prestar esclarecimentos” que lhe tomaram toda a tarde, já
que o voo havia ocorrido no fim da manhã e o advogado só foi liberado por volta
das 17 horas."
Um cidadão é levado a uma
instalação policial sem saber de que estava sendo acusado, para “prestar
esclarecimentos” por algo que está muito longe de ser um crime, por exercer sua
liberdade de expressão. Tudo isso porque um ministro do Supremo Tribunal
Federal ficou incomodado com críticas e ameaçou prendê-lo. Em uma ironia
absurda, tanta arbitrariedade vem justamente de um ministro que considera inaceitável
um criminoso começar a cumprir sua pena mesmo depois da condenação em segunda
instância, que tem atuado de forma enfática para reduzir penas ou inocentar
acusados de corrupção nos maiores escândalos da história do país, que é visto
como “garantista”, em referência à defesa dos direitos de réus e condenados.
Pois Lewandowski, que aplica o garantismo quando se trata de corruptos
notórios, não foi nada garantista diante de alguém que apenas resolveu usar sua
liberdade para criticar o Supremo e seus membros.
Entidades da magistratura
que saíram em defesa de Lewandowski disseram, em nota, que a liberdade de
expressão “não autoriza a prática de agressões pessoais, a invasão da
privacidade ou o desrespeito às instituições e a perturbação de voos”. Além de os
elementos disponíveis até agora não permitirem concluir que algo assim tenha
ocorrido, a nota ainda tenta ser mais realista que o rei, pois atribui a Acioli
condutas que o próprio gabinete do ministro não cita. A Polícia Federal
instaurou inquérito para apurar o caso, mas não pode se limitar a analisar as
ações do advogado; o fundamental é que a PF também verifique se as atitudes de
Lewandowski desrespeitaram ou não a lei de abuso de autoridade atualmente em
vigor. Entre as diversas circunstâncias que constituem abuso de autoridade, a
Lei 4898/65 descreve, em seu artigo 3.º, o atentado “à liberdade de locomoção”
e, em seu artigo 4.º, “ordenar ou executar medida privativa da liberdade
individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
"Mas, ainda que se
conclua que Lewandowski não cometeu crime, há a possibilidade de ilícito civil;
mesmo que nem isso tenha ocorrido (talvez por deficiência ou imprecisão da
própria lei), a maneira como ele se portou recorda o que há de pior no país da
carteirada, do “você sabe com quem está falando?”, em que as relações se pautam
pela imposição da força que deriva do cargo ocupado por alguém, e não do
respeito aos direitos individuais. Especialmente sintomático é o fato de a
ameaça de prisão ser a primeiríssima coisa que Lewandowski diz. O ministro,
diante da crítica de Acioli, não resolve contra-argumentar, nem mesmo ignorar o
advogado na tentativa de fazê-lo desistir – joga de imediato a carta da prisão.
Por mais que ninguém goste de ser interrompido, interpelado e filmado como
Lewandowski foi, nada parece indicar que Acioli tenha passado dos limites da
civilidade em qualquer momento; reagir como o ministro reagiu foi claramente um
excesso – um excesso perigoso, já que colocou na balança a própria liberdade do
advogado.
Os brasileiros não lutaram
contra o arbítrio por décadas para que, agora, um ministro do Supremo Tribunal
Federal, pelo simples fato de ter se incomodado com críticas dirigidas à
instituição de que faz parte, se ache no direito de cassar a liberdade de
expressão e mandar prender um cidadão sem motivo. A responsabilidade de Lewandowski
é tanto maior quanto é a dignidade de seu cargo. Como guardião da Constituição,
ele sabe muito bem o valor das liberdades previstas na Carta Magna, e
justamente por isso não pode escapar de um episódio desta magnitude como se ele
não tivesse plena consciência do que fez, ou como se sua atitude não fosse
assim tão grave. Lewandowski agrediu as liberdades individuais, os direitos do
cidadão, a democracia; seu ato exige investigação e, se for o caso, ação do
Ministério Público. Ao usar uma ameaça de prisão para calar uma crítica,
Lewandowski se portou não como defensor da lei, mas como alguém acima dela, um
perfil que não tem lugar em nossas instituições.
Gazeta do Povo
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