Direita e esquerda*
Hoje, fica claro que eleições livres não consagram
apenas
representantes do povo
Roberto DaMatta
A crise é deflagrada por um impeachment e pela descoberta
da corrupção num governo de esquerda. O fato marcante é o assalto aos bens
públicos fora dos polos canônicos – esquerda e direita. Não há como ignorar
como a desonestidade desmanchou a solidez das polaridade políticas.
Enquanto a esquerda foi um lugar na topografia política
inaugurada com a Revolução Francesa, como mostrou J. A. Laponce num livro
notável, não havia novidade. Mas, quando ela chega ao poder, cabe discutir como
e onde sua moralidade fica semelhante à de uma cavernária direita.
Um governo de esquerda decepciona justamente por sua
semelhança com a direita no que tange a ineficiência pública e a corrupção. Se
a prova do pudim está em comê-lo, a esquerda não mudou a receita e governou
seguindo as mesma práticas sociais que dominam o campo da política – um campo
dinamizado mais pelos relacionamentos e favores pessoais do que por princípios
ideológicos.
Parte inferior do formulário
Antigamente a “direita” significava manter o “status quo”
que a “esquerda” queria mudar. Minha geração tinha como ideal reduzir a
distância entre os poucos com muito e a multidão empobrecida. Até meu reacionário
e alienado pai entendia isso, embora ponderasse que relativizar a propriedade
seria promover o terremoto que derrubaria tanto o sistema quanto a nossa casa.
Era correto, entretanto, entender a história nessa chave
desde que a esquerda não desempenhasse o papel da direita. A troca de lugar –
esse movimento democrático – foi um avanço, pois democratizou também a
esquerda. Ela deixou a lista negra e passou a fazer suas listas negras. No
governo, foi obrigada a abandonar o “quanto pior, melhor” e exibiu poderosos e
fracos no seu próprio espaço. Perdeu a inocência.
Até onde a dualidade entre esquerda e direita disfarça
hierarquias? Num ensaio famoso e em outro contexto, Lévi-Strauss questiona se
as organizações dualistas existem – ou seriam um modo de esconder hierarquias.
Tal ocorreu quando a França revolucionária acabou com aristocracia, clero e
povo e reduziu tudo a uma dualidade. Quem era contra o rei, ficava à esquerda;
os que o sustentavam, à direta.
É prático, como sugere Laponce, reduzir o complexo campo
da política à polaridade das mãos. Afinal, vive-se sem uma das mãos – como
revelam os despotismos de direita e de esquerda –, mas não se caminha sem os
pés ou sem a cabeça. A polaridade entre esquerda e direita integra diferenças
porque suprime relações e estabelece, como mostrou Hertz, o destaque da mão
direita. Mas, como ensina Dumont, não podemos esquecer que as mãos, distintas
num juramento, juntam-se numa prece. São interdependentes.
Minha geração viu realizado o sonho de ter a esquerda no
poder e observou desencantada como as peculiaridades do Estado à brasileira,
associado a práticas sociais como o familismo e o favor, a transformaram em
direita. Nela, vimos também surgir uma selvagem corrupção. Um hóspede sempre
convidado do poder nacional, mas lamentavelmente escancarado pela esquerda.
Temo que, fora do poder, esquerda e direita se
diferenciem, mas tal não ocorre quando elas se mudam para o palácio. Nele, o
eleito tem que lidar com a matriz hierárquica nacional, com seu atávico e engenhoso
legalismo a qual lhe assegura uma capacidade de mando maior do que esperava.
Tal matriz tem feito milagres no Brasil. Se ela foi capaz de ordenar eleição
com escravismo, por que não seria igualmente competente para conciliar
austeridade socialista com riqueza capitalista? Além disso, o palácio tem suas
portas abertas aos movimentos populares e aos projetos milionários. Governar,
logo se descobre, é criar elos e fazer amizades cruzadas. Não é, pois, sem
espanto que descobrimos como o político atua por meio de um espesso tecido de
favores pessoais amparado por um igualmente denso e arcaico legalismo de cunho
teológico, destinado a criar e manter privilégios.
Resumo da ópera: além da luta de classes, temos que nos
haver com o combate entre o bom senso e um arraigado fetichismo legal. Com ele,
mascaramos crimes e garantimos impunidade. Hoje, fica muito claro que eleições
livres e competitivas não consagram apenas representantes do povo, mas também
fazem com que os eleitos pelo povo entrem numa casta – fiquem além da lei. Quem
deveria dar o exemplo de cidadania é tentado a virar mestre de mistificação e
oportunismo. E aqui, caros leitores, as mãos lamentavelmente se unem e se
igualam embolsando dinheiros...
*Publicado no Portal Estadão em 22/11/2017
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