A escrava que não é Isaura*
A ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois,
apresentou um pedido ao governo para acumular o seu salário de ministra com o
de desembargadora aposentada, o que lhe garantiria vencimento bruto de R$ 61,4
mil mensais, revelou o Estado. Por força do teto constitucional, ela
recebe atualmente R$ 33,7 mil mensais. Essa situação, “sem sombra de dúvidas,
se assemelha ao trabalho escravo, o que também é rejeitado, peremptoriamente,
pela legislação brasileira desde os idos de 1888 com a Lei da Abolição da
Escravatura”, diz o pedido apresentado no início de outubro.
É uma afronta à Lei Áurea e aos direitos humanos utilizar
a lei que aboliu a escravidão no País como argumento para receber mais que o
teto previsto na Constituição. A remuneração dos ocupantes de cargos públicos
não pode exceder o subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF), diz o art. 37, XI da Constituição.
Insatisfeita com os seus rendimentos de R$ 33,7 mil
mensais, a ministra dos Direitos Humanos fez uma interpretação muito peculiar
do que seria o teto constitucional. “Ao criar o teto remuneratório, não se
pretendeu, obviamente, desmerecer ou apequenar o trabalho daquele que, por
direito adquirido, já percebia, legalmente, os proventos como sói acontecer na
minha situação”, diz Luislinda Valois, referindo-se ao fato de que ela – obviamente
sem contar as famosas verbas indenizatórias – já recebia R$ 30.471,10 como
desembargadora aposentada e, portanto, o acréscimo em seus proventos pelo cargo
de ministra se resume a R$ 3.292 mensais brutos.
E é justamente isso – receber pelo cargo de ministra
apenas R$ 3.292 mensais – que faz a ministra dos Direitos Humanos achar que sua
situação é equiparável à dos escravos. “Todo mundo sabe que quem trabalha sem
receber é escravo”, disse Luislinda Valois ao Estado. Talvez não seja de
todo inútil informar-lhe que o salário mínimo no País é de R$ 937 e que a
imensa maioria dos trabalhadores não tem direito ao que Luislinda Valois, pelo
fato de ser ministra, tem: carro com motorista, jatinhos da FAB à disposição,
cartão corporativo e imóvel funcional.
Se Luislinda Valois sente-se insatisfeita e desmerecida
com as condições de seu trabalho a ponto de equipará-lo à escravidão, deve
imediatamente pedir demissão de seu cargo de ministra de Direitos Humanos, em
vez de requisitar que o governo descumpra a Constituição e lhe pague R$ 61,4
mil mensais.
O pedido apresentado por Luislinda Valois é manifestação
de absoluta incompatibilidade com o cargo que ocupa. O respeito aos direitos
humanos tem como requisito primário o cumprimento da lei. Quem busca um
privilégio que afronta a Constituição – receber do Estado R$ 61,4 mil mensais –
não preenche as condições para ocupar a chefia do Ministério dos Direitos
Humanos.
Além de respeitar a lei, quem comanda o Ministério de
Direitos Humanos precisa ter um mínimo de sensibilidade com a situação do
governo e do País. Há um grave problema fiscal, de difícil resolução, com
consequências para todos, população e governo. Basta ver a árdua batalha para
aprovar a reforma da Previdência. Além disso, há gravíssimos problemas sociais,
a começar pelos 12,96 milhões de brasileiros desempregados, segundo dados do
IBGE. Enquanto isso, a ministra dos Direitos Humanos apresenta um pedido de 207
páginas ao governo federal para que possa receber R$ 61,4 mil mensais.
Quando questionada sobre a razoabilidade de seu
requerimento e de seu argumento sobre a escravidão, Luislinda Valois disse-se
triste com a repercussão do caso. “Estou muito triste. Sempre fui muito
correta, estudiosa e não admito que queiram me levar para o lado negativo.
(...) Tanta coisa que tem que se fazer no País e as pessoas ficam se apegando a
miudezas? Eu só quero o meu direito de peticionar.”
Certamente, cabe-lhe o direito de postular suas
pretensões salariais e de dizer o que pensa. O que não cabe é fazer tais
pedidos e interpretações e continuar ocupando o Ministério dos Direitos
Humanos. Se o pesado cargo lhe é demais, alforrie-se. Ela é livre para isso. O
que ela chama de “miudezas” está longe de ser miudezas – são acintosos
privilégios num país de desprivilegiados.
*Publicado no Portal Estadão em 03/11/2017
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