A democracia totalitária bolivariana*
Subvertida a democracia, o véu cai e nem eleições são
mais necessárias para manter o poder
Denis Lerrer Rosenfield **
Nada do que está hoje acontecendo na Venezuela deveria
surpreender. Presenciamos o desenvolvimento lógico-político de instauração do
socialismo naquele país, tendo começado com Chávez e encontrando o seu desfecho
na abolição da democracia e no assassinato de mais de uma centena de pessoas
nas ruas em poucas semanas.
Espanta, contudo, o cinismo de alguns políticos que
teimam em dissociar a “democracia” de Chávez da “ditadura” de Maduro, como se
fosse possível separar as premissas da conclusão. Nesse sentido, o elogio do
indefectível Lula a Chávez quando considerou que aquele país tinha “excesso de
democracia”, e não falta, acompanhado de apoio financeiro do contribuinte
brasileiro por meio do BNDES, mostrou coerência com sua sustentação do ditador
Maduro. O apoio atual do PT a este, com manifestações de sua presidente no Foro
de São Paulo, segue uma mesma lógica, cuja única virtude consiste em expor a
faceta totalitária do partido.
Qual democracia está em questão: a democracia
representativa, com todas as suas limitações e contrapesos, ou a democracia
totalitária, com sua ilimitação e projeto de destruição do próprio sistema
representativo?
A democracia totalitária é um conceito elaborado por um
célebre cientista político, J. L. Talmon, em sua obra Origens da democracia
totalitária. Recorrendo aos filósofos do século 18, mas atento ao fenômeno
totalitário comunista do século 20, destaca ele o surgimento de uma ideia
democrática, fundada na soberania do povo, entendida como guia de uma atividade
política que desconhece limites. Em nome da vontade popular, tudo seria
possível, inclusive o desrespeito à lei e à Constituição ou, mesmo, a abolição
das duas.
Em nosso país, por exemplo, quando políticos de esquerda
procuram cancelar os seus crimes dizendo que as eleições absolvem os que
violaram as leis, estão dizendo com isso que processos eleitorais são os únicos
capazes de julgar os políticos, por mais criminosos que sejam. Não seriam os
tribunais os juízes, mas as eleições, na medida em que seriam expressões da vontade
popular. É o mesmo argumento que está sendo utilizado por Lula e os seus
apoiadores, forçando de qualquer jeito a sua candidatura, para, uma vez eleito,
escapar de qualquer condenação em curso. É a faceta totalitária.
Em sua vertente totalitária, a democracia é reduzida a
eleições, como se estas fossem os únicos processos decisórios válidos.
Constituição, separação de Poderes e respeito às leis são desconsiderados como
se não fizessem parte, senão subsidiária e aparentemente, do conceito mesmo de
democracia. O que fez Chávez?
Conquista o poder por intermédio de eleições e nele
permaneceu por meio de referendos que o legitimavam. A esquerda
latino-americana e a brasileira, em particular, ressaltaram continuamente este
aspecto com o intuito de mostrar a reconciliação do socialismo com a
democracia. A imagem socialista-totalitária seria coisa do passado.
Uma vez no poder, Chávez começou a enfraquecer, senão a
abolir, as instituições representativas. Primeiro, o Judiciário foi manipulado,
com a substituição de juízes por ideólogos e militantes que obedeciam às
orientações do líder máximo. Ministros foram presos por não seguirem a nova
linha de conduta. O Supremo, porém, continuou funcionando em sua nova roupagem
totalitária, tendo como função referendar as orientações governamentais. A
esquerda clamava, então, que as leis estavam sendo respeitadas por decisão da
mais alta Corte do país. A pantomima era total.
Segundo, o Poder Legislativo foi completamente investido
pelos “socialistas”, passando a ser um mero referendador das ordens de Chávez.
Transferiu a ele, inclusive, o poder de legislar, investindo-o de “leis
delegadas”, de tal maneira que, por atos administrativos, poderia editar e
promulgar leis.
Assim, concentrou em sua pessoa o poder de julgar,
legislar e governar, abolindo, de fato, a separação de Poderes. Fingiu
respeitar a democracia, pervertendo-a completamente. Na verdade, aproveitou-se
de instrumentos democráticos, como eleições, para subverter a democracia. Eis a
novidade do “socialismo do século 21”.
Para bem assegurar o seu poder, tomou conta das Forças
Armadas pelo seu aparelhamento por oficiais submissos ao novo regime. A
ideologia se apoderou dos militares, obrigados a jurar “socialismo ou morte”. A
bem da verdade, o socialismo está levando à morte de jovens nas ruas de Maduro.
Não satisfeito, usou a expertise totalitária de Fidel Castro e seu irmão Raul
importando especialistas cubanos para, com seus serviços de inteligência,
fortalecer os laços “socialistas” das Forças Armadas.
Como se não fosse ainda suficiente, pois o controle
deveria ser total, lançou mão da criação das milícias bolivarianas, corpo
paraestatal, diretamente armado e controlado por ele, tendo como função
aterrorizar a população. Seguiu o exemplo das SA de Hitler, disseminando o medo
e a violência entre os cidadãos. Ora, são essas mesmas milícias que estão
agora, sob a direção de Maduro, assassinando os manifestantes e os opositores
venezuelanos.
O que faz Maduro? Segue os ensinamentos de seu mentor.
Ele é apenas um novo elo da mesma lógica totalitária. A diferenciação reside em
que a violência se tornou explícita. A farsa de uma Assembleia Constituinte
suprime o Poder Legislativo ainda vigente, que se tinha revigorado por eleições
ainda permitidas. A população está na miséria, os supermercados estão
desabastecidos, o PIB cai vertiginosamente, a inflação está nas alturas e o
novo governante agora o que mais teme é um processo eleitoral, um referendo.
Uma vez tendo sido a democracia subvertida, até o véu cai, com eleições não
sendo mais necessárias para a conservação do poder.
A democracia representativa está morta. Maduro prestou
homenagens a Fidel em sua tumba. Foi coerente com o assassinato que perpetua de
manifestantes. Em seus féretros jaz o socialismo.
**Professor de Filosofia na UFRGS
*Publicado no Portal Estadão em 21/08/2017
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