A vez do parlamentarismo*
Trata-se de recolocar na mesa uma mudança de modelo
que
enseja a possibilidade de superação das sucessivas
crises de governabilidade
Está ganhando corpo o debate sobre a eventual adoção do
parlamentarismo como sistema de governo. Antes que se venha com o argumento de
que o parlamentarismo já foi rejeitado duas vezes em plebiscito, em 1963 e
1993, e portanto o presidencialismo já estaria definitivamente consagrado em
nosso País, é forçoso reconhecer que o Brasil já vive, há muito tempo, mas
especialmente hoje, uma forma improvisada de parlamentarismo.
O espírito parlamentarista parece se impor, na prática,
porque o sistema presidencialista ora em vigor atrela o presidente ao Congresso
e à geralmente instável base de apoio. Por essa razão, não se pode falar que
vigora no País a plena separação dos Poderes Executivo e Legislativo que
caracteriza o presidencialismo. A experiência do presidencialismo brasileiro
tem sido enviesada, no sentido de que o Executivo governa e, ao mesmo tempo,
legisla. No Brasil, o presidente, como se fosse um primeiro-ministro, tem meios
de interferir no processo legislativo – as medidas provisórias, que podem ser reeditadas
enquanto não forem votadas, são a essência desse poder de legislar.
Enquanto o presidente legisla, o Congresso governa – é
assim que funciona o chamado “presidencialismo de coalizão”. Nesse sistema bem
brasileiro, o chefe de governo é obrigado a lotear o Executivo entre os
partidos cujo apoio pretende obter. Só isso explica a existência de mais de 20
mil cargos comissionados na administração pública do País, ocupados por
indicação política. Na Grã-Bretanha são 300. Esse número simboliza uma estrutura
viciada em troca de favores para a manutenção do poder.
Não é preciso muito esforço para perceber que um
Ministério formado nessas bases dificilmente será um gabinete de notáveis.
Resta ao presidente, em tal cenário, preservar como sua “cota pessoal” cargos
fundamentais, como os da equipe econômica, deixando esses postos estratégicos a
salvo do feirão de cargos e prebendas.
É ocioso enfatizar que esse sistema perpetua o
fisiologismo, abastardando a atividade política. Mais do que isso: os muitos
partidos que nada representam podem sabotar o governo se este não lhes
satisfizer o apetite. Como nenhum partido sozinho, nem mesmo aquele vitorioso
na eleição presidencial, consegue mais do que 20% dos deputados, o presidente é
natural refém desses arranjos nem sempre (quase nunca, dirão os mais céticos)
voltados para o interesse dos eleitores. Se o presidente for habilidoso o
bastante para administrar tanta voracidade, sobrevive e até consegue governar,
construindo sua maioria a cada votação; se não for, corre o risco de perder o
cargo.
Enquanto o parlamentarismo prevê a substituição do
primeiro-ministro quando este não consegue apoio do Parlamento para governar, o
presidencialismo pressupõe que o presidente governe até o final do mandato,
pois sua legitimidade não deriva do Legislativo, e sim do voto popular. Por
esse motivo, a substituição do presidente, por meio de impeachment, é medida
extrema. Os Estados Unidos, que criaram o impeachment, jamais afastaram um
presidente. Já o Brasil, como a comprovar seu parlamentarismo disfarçado,
trocou duas vezes de presidente desde 1992.
O atual debate sobre a adoção do parlamentarismo, que
necessariamente deve vir acompanhada de ampla reforma no sistema de
representação partidária, não se presta a tumultuar o ambiente político – como
aconteceu em 1996, quando o PT do sr. Lula da Silva, depois de ter feito
campanha pelo presidencialismo no plebiscito de 1993, apoiou uma emenda
parlamentarista só para tentar impedir a reeleição de Fernando Henrique
Cardoso. Tampouco se trata de desrespeitar a voz dos eleitores nos plebiscitos
que decidiram manter o presidencialismo – embora se deva enfatizar que a
consulta de 1963 foi fruto de uma situação especialíssima, na qual o presidente
João Goulart rejeitou a solução da crise resultante da renúncia do presidente
Jânio Quadros, criando, assim, outra crise que desembocaria em sua deposição.
Já a votação de 1993 foi marcada pela desinformação em que o eleitorado foi
mantido por líderes políticos como o presidente Itamar Franco, que queriam manter
a situação como estava. Trata-se, sim, de recolocar na mesa uma mudança de
modelo que enseja a possibilidade de superação das sucessivas crises de
governabilidade, que tanto mal causam ao Pais.
*Publicado no Portal Estadão em 14/08/2017
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