Horror, indignação e vergonha*
Diante da tragédia ocorrida no Complexo Penitenciário
Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, na qual 56 presos foram mortos – alguns
decapitados, esquartejados e carbonizados – numa briga de facções criminosas,
que chocou a opinião pública, os sentimentos predominantes são de horror,
indignação e vergonha. Horror pela selvageria, indignação pela inércia do poder
público, porque essa era uma tragédia mais do que anunciada, e vergonha diante
de nós mesmos, em primeiro lugar, e também diante do mundo.
As cenas de barbárie, que se vêm tornando corriqueiras
nos acertos de contas e nas revoltas nas penitenciárias de todo o País,
dominadas por organizações criminosas, desta vez surpreenderam até mesmo os
especialistas e observadores mais pessimistas. Só não se pode dizer que
atingiram o paroxismo, porque a essa altura é possível esperar qualquer coisa,
de tal forma se degradou a situação nas prisões. E a tal ponto que, apesar das
dimensões e características da tragédia, as autoridades e a população
respiraram aliviadas porque 13 funcionários e 70 presos tomados como reféns
acabaram libertados, parte deles apenas ferida.
Durante a rebelião, que começou domingo e durou cerca de
17 horas, os presos ligados ao grupo Família do Norte (FDN), aliado ao Comando
Vermelho (CV), do Rio, caçaram os integrantes do Primeiro Comando da Capital
(PCC), o grupo paulista que se espalhou por todo o País, no mais sangrento
acerto de contas, até agora, entre essas organizações criminosas, que lutam
pelo poder dentro dos presídios e disputam o tráfico de drogas, que há muito se
transformou em sua maior fonte de renda. Derrotado nesse episódio, já se
especula sobre o que fará agora o PCC, o mais forte daqueles grupos.
Tão chocante quanto a selvageria de Manaus – e embora de
natureza diferente – é a constatação, que ocorre a qualquer pessoa minimamente
informada, de que ela é tudo, menos surpreendente. Tanto ela como as muitas
outras que a precederam são a consequência inevitável da omissão do poder
público, em todos os seus níveis e em sucessivos governos, diante da degradação
do sistema penitenciário e seu controle de fato por organizações criminosas
como o PCC, o CV e a FDN. Situação que se agravou ainda mais e se tornou
explosiva, quando a esse controle aberrante se juntou a disputa entre eles pelo
predomínio e pelo tráfico.
A resposta do poder público a esse desafio nunca foi além
de ações tímidas. A superlotação dos presídios e as consequentes condições degradantes
em que vivem os presos – de Norte a Sul do País, em Estados ricos e pobres –
não pararam de piorar nas últimas décadas. Entre 1990 e 2015, a população
carcerária cresceu muito mais do que o número de vagas construídas. O sistema
tem capacidade para 310 mil presos, mas abriga 600 mil. No Compaj, a relação é
de 454 vagas para 1.229 detentos. A existência de um grande número de presos
sem julgamento ou que poderia cumprir pena alternativa só piora as coisas.
Foi nesse caldo de cultura que vicejaram PCC, CV e FDN. O
controle dos presídios por esses grupos inclui a livre entrada – com raríssimas
exceções, que não pesam no conjunto – de telefones celulares que asseguram um
eficiente sistema de comunicação entre os líderes presos e comparsas soltos.
Os governos federal e estaduais estão colhendo o que
plantaram nas últimas décadas. E o mais desanimador é que, apesar das tragédias
que se sucedem, entre as quais a de Manaus é – até agora – apenas uma das mais
escabrosas, não há da parte das autoridades nenhum sinal de reação. Em vez de
dar prioridade à melhoria e ampliação do sistema penitenciário, o governo
federal editou medida provisória que permite transferir 30% dos recursos do
Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para a área de segurança pública.
E o ministro de Justiça, Alexandre de Moraes, que passa
por ser o inspirador desse disparate, ainda se permite tratar a tragédia de
Manaus com um tom burocrático, sem a menor sensibilidade para aquilatar o que
se passou – inclusive minimizando a luta de facções que está por trás dela –,
numa atitude que beira a irresponsabilidade. É o pior que poderia acontecer
nessa hora grave.
*Publicado no Portal Estadão em 04/01/2017
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