Aos ‘indignos do
poder’
Eliane Cantanhêde
Com
um discurso planejadamente morno, próprio talvez de uma ex-aluna de colégio
interno, aplicada e chegada aos clássicos e à poesia, a nova presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, abriu espaço para que o decano
da Corte, ministro Celso de Mello, desse todos os recados políticos com o calor
e a contundência que o momento merece e as barbaridades havidas exigem.
Enquanto Mello falava, a ilustre plateia fazia um silêncio sepulcral.
Ao lado do também ex-presidente José Sarney (que nomeou
Mello para o STF),Luiz Inácio Lula da Silva (autor da nomeação de Cármen
Lúcia) ouviu calado, quase sem se mexer, não fosse o tique de cofiar o bigode.
Na terceira poltrona, o governador de Minas, Fernando Pimentel. Na mesa de
honra, o presidente do Senado, Renan Calheiros. Mais adiante, o ex-ministro
Edison Lobão. O que não faltou na posse da nova presidente do Supremo foi
político enrolado de alguma forma com a Justiça.
Celso de Mello não se fez de rogado, nem de diplomata:
“Os cidadãos desta República têm o direito de exigir que o Estado seja dirigido
por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes
incorruptíveis”. E advertiu: “Que deste tribunal parta a advertência, severa e
impessoal, de que aqueles que transgredirem tais mandamentos expor-se-ão (...)
à severidade das sanções criminais, devendo ser punidos (...) esses infiéis da
causa pública e esses indignos do poder”.
Os recados foram de uma coragem rara, de uma clareza
inquestionável e para alvos evidentes, bem ali, a poucos metros. Segundo Mello,
“impõe-se repelir qualquer tentativa de captura das instituições de Estado por
organizações criminosas para dominar os mecanismos de ação governamental, em
detrimento do interesse público e em favor de pretensões inconfessáveis”. Ainda
mais direto, referiu-se a “uma estranha e perigosa aliança entre determinados
setores do poder público, de um lado, e agentes empresariais, de outro,
reunidos em imoral sodalício (confraria)...”.
Esse, segundo o decano, é um “contexto de criminalidade
organizada e de delinquência governamental”. E citou Ulysses Guimarães, ainda
hoje um exemplo de político, enquanto a Câmara se preparava para cassar Eduardo
Cunha: “A corrupção é o cupim da República. (...) Não roubar, não deixar
roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública”.
A cerimônia – considerada a posse mais concorrida, no
mínimo uma das mais, em 25 anos – teve ainda discurso do procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, lembrando o quanto o País precisa mudar e saudando:
“Parabéns, ministra Cármen Lúcia, o Brasil precisa mais do que nunca do seu
caráter”.
No encerramento, a nova presidente circundou o protocolo
para começar seu discurso saudando não o presidente Michel Temer, ali ao seu
lado, ou qualquer outra das muitas autoridades presentes, mas, sim, “Sua
Excelência, o povo brasileiro”. E é em nome desse povo que ela tem proferido
seus votos de vanguarda, a favor, por exemplo, das biografias não autorizadas,
das células-tronco embrionárias, da união homo afetiva.
Na guerra das redes sociais, não faltaram os que
condenaram a presença de Lula e o convite a Fernando Collor, mas esse foi mais
um recado de ontem, nessa nova fase do Supremo: Cármen Lúcia, mesmo nomeada por
Lula, mantém-se distante da política partidária, da polarização PT-PSDB.
Pronta, portanto, para mais um momento histórico – e inédito – do STF e da vida
nacional: o da investigação, julgamento e eventual condenação dos políticos na
Lava Jato. Republicana, ela convidou para sua posse os ex-presidentes da
República e do Supremo, mas, “amizade, amizade, negócios à parte”. Ou “convite,
convite, julgamentos à parte”.
*Publicado no Portal estadão.com em
13/09/2016
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