A farsa da ‘repactuação’*
A arte de manipular as palavras com o objetivo de escamotear,
engabelar, falsear, dissimular, dourar a pílula, enganar os incautos, enfim, é
um recurso a que os políticos tanto mais recorrem quanto maior é sua falta de
escrúpulos ou a necessidade de se livrar de apertos. Em situações-limite, essa
capacidade de vender gato por lebre pode extrapolar as fronteiras da
plausibilidade, em explícita demonstração de caradurismo do artista. Foi o que
se permitiu o ministro Jaques Wagner, chefe de Gabinete da Presidência da
República, na terça-feira passada, ao explicar a posição do governo diante da
saída do PMDB de sua base de sustentação. Ignorando o fato de que dias antes
Dilma Rousseff havia declarado que “queria muito” manter a aliança com os
peemedebistas, Wagner tentou minimizar a importância do ocorrido e garantiu que
a notícia do rompimento chegava “em boa hora”, porque abria para o governo a
oportunidade de “repactuar a relação” com seus aliados. Com os que sobrarem,
faltou acrescentar.
“Repactuar a relação”, em português claro, significa concentrar
a ação política do governo no varejo do toma lá dá cá com os parlamentares que
aceitarem o risco de se beneficiarem de uma sinecura com prazo de validade
certamente muito curto. A tarefa dos governistas é árdua tanto pela urgência
como por sua amplitude, já que teoricamente, com o desembarque do PMDB, há
cerca de 600 cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões a serem
“repactuados”. O objetivo é garantir, no mínimo, cerca de 80 votos que o Planalto
julga necessários para, somados aos outros 100 de que julga já dispor, obter os
172 necessários para barrar o processo de impeachment na Câmara dos Deputados.
A absoluta prioridade dessa “repactuação” é demonstrada por
alguns fatos concretos, como a decisão de Dilma de cancelar a viagem que faria
hoje aos Estados Unidos para participar da Cúpula Sobre Segurança Nuclear da
ONU. A presidente permanecerá em Brasília para poder sacramentar alguns
acordos, mas também para evitar que a vacância temporária da Presidência da
República provoque a constrangedora situação de a chefia do governo ser
ocupada, por algumas horas que seja, pelo vice-presidente que também é o chefe
do partido que era o maior aliado do Planalto e agora se tornou o potencial
beneficiário do impeachment de Dilma.
“Repactuar” implicará também – e principalmente – substituir os
ministros peemedebistas, pelo menos quatro dos sete, que em função do
rompimento do partido com o governo entregarão seus cargos. Essa movimentação,
a propósito, fornece um bom exemplo do nível de qualidade, pelo menos do ponto
de vista ético, dos políticos que governam o País. A partir do momento em que
um partido rompe sua aliança com o governo, o natural e óbvio é que os filiados
que integram os quadros da administração pública em nome da legenda,
principalmente no primeiro escalão, renunciem imediatamente. É uma questão
elementar de ética.
Henrique Eduardo Alves, estreitamente ligado à cúpula dirigente
do PMDB, não esperou a decisão do Diretório Nacional para entregar o cargo de
ministro do Turismo. Deverão fazer o mesmo, provavelmente ainda esta semana,
mais três ministros que pediram um tempo apenas para ultimar providências que
consideram importantes: Eduardo Braga, de Minas e Energia; Helder Barbalho, dos
Portos; e Mauro Lopes, da Aviação Civil. Outros três já declararam que
permanecerão onde estão: Kátia Abreu, da Agricultura – que é amiga de Dilma,
sempre foi considerada escolha pessoal da presidente e admite que está pensando
em mudar de partido –; Marcelo Castro, da Saúde; e Celso Pansera, de Ciência e
Tecnologia.
O desempenho opaco dos dois últimos, integrantes do chamado
baixo clero da Câmara, demonstra que jamais teriam sido alçados à condição de
ministros de Estado se não fosse pela imposição de acordos fechados para
atender a interesses de grupos políticos. Ambos sabem disso e não abrem mão de
desfrutar, nem que seja por mais umas poucas semanas, as prebendas dos cargos
que, por obra do acaso, tiveram a sorte de assumir. São produtos legítimos do
“presidencialismo de coalizão” à moda de Lula.
*Editorial publicado no Estadão.com em 31/03/2016
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