Os números amordaçados
O ESTADO DE S.PAULO
24 Outubro 2014
A sonegação começou pelos dados mais recentes sobre a
desigualdade de renda no País, apurados pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento. Em sintonia com os
interesses eleitorais da presidente Dilma Rousseff, a cúpula do órgão adiou
para depois do segundo turno a divulgação dos números que contrariam a
propaganda da candidata sobre a queda continuada da diferença de rendimentos
entre os mais ricos e os mais pobres. Em protesto contra a censura, que fere
frontalmente o direito de acesso dos brasileiros a informações de natureza
pública, um dos diretores da entidade, Herton Ellery Araújo, pediu exoneração
do seu cargo. Foi seguido pelo vice-coordenador da sua área, Marcelo Medeiros.
Segundo o titular do instituto, Sergei Soares, o trancamento não
teria sido ordenado pelo governo. "Foi uma decisão nossa." É muito
possível: no Estado enfeudado pelo PT, servidor esperto é o que se antecipa ao
que sabe ser a vontade do amo. O amo é conhecido por sua paranoia, embora nas
atuais circunstâncias o temor é bem capaz de ter fundamento. O risco real e
presente de Dilma ser derrotada no tira-teima de depois de amanhã pelo tucano
Aécio Neves decerto pôs o seu apparat em alerta máximo para impedir que, levada
à disputa, qualquer novidade adversa ao seu projeto de poder possa tirar votos,
por poucos que sejam, de sua porta-estandarte. Eis por que, à mordaça no Ipea,
outras foram aplicadas em setores tão diversos como o Ministério da Educação e
da Receita Federal, de que se falará adiante.
O caso do instituto merece ser visto bem de perto por dois
motivos que se entrelaçam: a importância dos seus levantamentos sobre o perfil
social da população e, nesse estudo específico, pela inovação que permitiu aos
seus pesquisadores chegar a verdades inconvenientes para a retórica petista. O
primeiro ponto é óbvio: o padrão de distribuição da riqueza nacional neste país
que padece para descalçar as botas de chumbo da histórica e vergonhosa
desigualdade que nos caracteriza está no centro das atenções desde a
redemocratização, a ponto de ter sido uma das preocupações dominantes dos
constituintes de 1988. Já a citada inovação, que consistiu em incorporar
informações do Fisco aos dados convencionais, fez o Ipea concluir que a
desigualdade não só é mais alta do que estimava, como ainda se estabilizou
entre 2006 e 2012, segundo o pesquisador Marcelo Medeiros, citado pelo jornal
Valor.
O Ipea sustenta que a legislação eleitoral proíbe que se tornem
públicos, entre outros, dados capazes de influir nas decisões de voto. Trata-se
de uma patranha. O fato é que, dentro da perversa lógica petista de que as
informações em posse do Estado devem servir a seus ocupantes - ou para ser
divulgadas com espalhafato, quando positivas, ou para ser trancafiadas, quando
potencialmente perturbadoras para as perspectivas eleitorais da chefe deles
todos -, faz sentido, por exemplo, o arrocho do resultado da arrecadação
federal em setembro. Por manter a tendência minguante dos números anteriores, é
mais uma prova da crônica situação enfermiça da economia, provocada não pela
retração das atividades em escala internacional, como alega a presidente, mas
pela incompetência e os zigue-zagues de seu governo.
Para um governo que também quer fazer crer que faz tudo e mais
alguma coisa pela educação fundamental no País, melhor deixar guardados os
últimos resultados do Ideb - a aferição em âmbito nacional, a cada dois anos,
com mais de 7 milhões de estudantes, dos conhecimentos de português e
matemática do alunado do ensino básico. O exame mais recente data de agosto de
2013. Responsável pela prova, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
(Inep), do Ministério da Educação, nega a intenção de escamotear a verdade: a publicação
estaria demorando porque os dados do exame precisam ser apresentados de forma
tal a facilitar a sua compreensão pelas escolas. Se essa alegação pretende ser
sofisticada, a da Receita para a não divulgação da arrecadação de setembro é de
um cinismo atroz: os servidores responsáveis por dar publicidade aos números
estão absorvidos esta semana com atividades de planejamento.
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