Tarados pelo capitão
– Estou te achando
preocupado.
– Como você adivinhou?
– Tá na cara. Suas rugas
na testa estão quase formando uma suástica.
– É, você me conhece
mesmo. Capaz de saber até qual é a minha preocupação.
– A imagem do Brasil lá
fora.
– Exatamente. Não tenho
nem conseguido dormir.
– Entendo. Eu também estou
assim.
– Sem dormir?
– Até durmo. Mas tenho
pesadelos horríveis.
– Quais?
– Sonho quase toda noite
que chego em Paris e a Greta descobre que eu sou brasileiro. Aí começa a berrar
com aquele megafone mandando os patrulheiros dela me darem uma surra.
– Mas a Greta é sueca.
– Eu sei, mas os meus
pesadelos são muito sofisticados. É como se tivesse um diretor de cena gritando
“bota a garota em Paris pra dar mais dramaticidade”. Aí eu apareço naquelas
ruas imundas cheias de barricadas e fogueira por todo lado, que é o cenário
atual do quintal do Macron.
– Grande líder.
– Grande estadista. Com
tanto incêndio em casa, não sei como ainda arruma tempo pra panfletar... quer
dizer, pra cuidar das queimadas na Amazônia.
– Ele também aparece nos
pesadelos?
– Aparece... (snif, snif)
– Que isso? Tá chorando?
– (snif) ...desculpe. É
que é horrível... (snif, snif)
– O Macron?
– É! Ele sempre vem com
aquele biquinho nervoso, quase tocando na minha cara e repetindo sempre a mesma
palavra.
– Que palavra?
– Bolsonarrô...
Bolsonarrô... Bolsonarrô... Tipo uma obsessão, sabe?
– Fica calmo. Entendo essa
obsessão. É a minha também.
– Bolsonaro?
– É. Só penso nisso. E a
Greta também. E a Merkel, a Bachelet, o DiCaprio, o Incrível Hulk... Todo mundo
só pensa em Bolsonaro.
– Fico mais tranquilo, achei
que fosse só eu.
– Nada. Você não viu outro
dia na TV aquela moça pedindo orientação ao filósofo sobre como falar de
Bolsonaro na ceia de Natal?
– E o que o filósofo
disse?
– Perguntou se ela não
tinha outro assunto.
– Esses filósofos são
muito despreparados.
– Amadores. Como pessoas
inteligentes e modernas como nós podem se encontrar numa ceia de Natal em 2019
e não falar de Bolsonaro?
– Seria um vazio
insuportável.
– Pois é. A filosofia não
está atualizada para dissecar os conflitos contemporâneos.
– Até porque tudo indica
que vai ser um dos melhores Natais da década e ninguém merece encontrar um
parente fascista pra lembrar que todos os indicadores econômicos melhoraram em
2019.
– Cala a boca!
– Desculpe. Me descontrolei.
– Normal. Mas toma
cuidado. Ainda nessa época de ceia natalina.
– Vou ficar atento. Se
alguém vier me falar de Paulo Guedes e reforma da Previdência leva uma rabanada
na cara.
– Isso aí. Não deixa
fascista se criar, não.
– Pergunto logo pela
imagem do Brasil lá fora. E já vou mostrando uma careta da Greta.
– Perfeito. Tem que ser
duro mesmo com essa gente. E se alguém lembrar que o Risco Brasil caiu agora
pro menor nível da década, você diz que isso é conspiração da CIA contra os
pacifistas e dá uma cusparada.
– Tranquilo. Ainda mostro
uma foto da Jane Fonda algemada.
– Aí você já ganhou a
discussão. Não precisa nem jogar outra rabanada.
– A Jane Fonda é tão
corajosa que declarou que a Dilma Rousseff é símbolo mundial do poder feminino.
– Nessa época sim, a
imagem do Brasil lá fora nos enchia de orgulho.
– Nem me fala. Lembra a
Sonia Braga em Cannes defendendo as pedaladas da Dilma?
– Momento histórico. Todo
mundo sabe que pedalar ajuda a salvar o planeta.
– E que a melhor afirmação
cultural de um país é uma presidente que não completa uma frase, porque frases
completas são uma caretice.
– Exato. Dilma desafiou o
sistema com o seu pensamento inalcançável, portanto impossível de aprisionar.
– Me emocionei agora...
(snif). É isso: Dilma representa a liberdade, um novo paradigma intelectual que
não precisa da velha ordenação de palavras em frases, ideias, pensamentos,
nada. Uma revolucionária.
– Que saudade. Vamos ver
um filme cabeça pra relembrar esse tempo em que o Brasil esbanjava carisma no
exterior?
– Será? Mas... E o
Bolsonaro?
– Verdade... E o
Bolsonaro?
– Tá vendo? Nem cinema a
gente consegue ter mais.
– Maldito fascismo.
Guilherme Fiuza
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