Muitos caminhos, um
objetivo:
a prisão em segunda
instância
No voto decisivo do
julgamento sobre as prisões após condenação em segunda instância, no início de
novembro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, deixou aberta
a possibilidade de o Congresso Nacional alterar a lei para que ela pudesse permitir
o cumprimento da pena a partir da condenação por órgão colegiado, como os
Tribunais de Justiça estaduais e os Tribunais Regionais Federais. Os
parlamentares comprometidos com o combate à corrupção e à impunidade perceberam
a possibilidade e, imediatamente, resgataram projetos de lei ou de emenda à
Constituição já apresentados, além de levar novos projetos tanto à Câmara
quanto ao Senado. Alguns deles começam a avançar, e atacam várias frentes. A
estratégia é acertada, embora ainda seja cedo para saber como esse movimento
terminará.
São vários os textos
constitucionais e infraconstitucionais que tratam da possibilidade de prisão,
da presunção de inocência e da duração do processo, a começar pelo artigo 5.º,
inciso LVII, da Carta Magna: “ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória”. As primeiras tentativas de colocar
na Constituição a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância
miravam neste inciso, mas aqui também residem grandes dificuldades. É evidente
que não se pretende abolir a presunção de inocência, nem o devido processo
legal, e o início do cumprimento da pena após o julgamento por colegiado não
agride nenhum desses princípios, mas alguns ministros do STF já deixaram claro
que não admitirão alterações no artigo 5.º por se tratar de cláusula pétrea. É
a posição, por exemplo, de Marco Aurélio Mello, embora também haja vozes
discordantes, como a do próprio Toffoli.
É importante que os parlamentares procurem
soluções
diversas para que não ocorram situações
em que haja conflito entre textos
legais
Outros projetos de lei
buscam alterar o artigo 283 do Código de Processo Penal, justamente o texto que
esteve no centro das ações julgadas pelo Supremo no início do mês. Ele diz que
“ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença
condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo,
em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. As duas casas do
Congresso têm projetos de lei para incluir neste artigo a prisão após
condenação em segunda instância, e é no Senado que a ideia está mais avançada,
com a possibilidade de votação tanto na Comissão de Constituição e Justiça
quanto no plenário já na semana que vem.
O projeto mais adiantado,
no entanto, está na Câmara, e tem sua dose de controvérsia por pretender mudar
a Constituição sem tocar no artigo 5.º. É o caso da PEC 199/2019, já aprovada
na CCJ da Câmara e que agora vai a comissão especial. Ela altera os artigos 102
e 105 da Carta Magna, que tratam das atribuições do STF e do STJ,
respectivamente. Elas transformam os recursos das ações penais em “ações
revisionais”, independentes das ações penais propriamente ditas. Estas
terminariam já na segunda instância, ou seja, o trânsito em julgado ocorreria
ao fim das análises dos recursos (como os embargos de declaração ou
infringentes) nos TRFs e TJs. Entre os argumentos apresentados está o de que a
análise da culpa – ou seja, se o réu cometeu ou não o crime de que é acusado –
termina na segunda instância. Os tribunais superiores apenas verificam questões
processuais: eles não podem declarar que alguém é inocente; no máximo, podem
anular um julgamento em caso de irregularidade durante o processo (por exemplo,
se tiver havido cerceamento de defesa). A ideia não é nova: foi proposta pela
primeira vez pelo então ministro do STF Cezar Peluso, e já foi objeto de uma
PEC, protocolada em 2011 e arquivada em 2018, quando já tinha sido totalmente
desfigurada.
Também no Senado há
tentativas de mudar a Constituição sem alterar o artigo 5.º. É o caso da PEC
5/2019, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR); ela inclui no
artigo 93 da Carta Magna, que integra o capítulo sobre o Poder Judiciário, um
novo inciso, segundo o qual “a decisão condenatória proferida por órgãos
colegiados deve ser executada imediatamente, independentemente do cabimento de
eventuais recursos”. É um texto direto, que não altera o conceito de trânsito em
julgado e também não corre o risco de ser visto como alteração de cláusula
pétrea. A PEC 5/2019, no entanto, está fora de pauta após um acordo feito entre
os senadores para dar prioridade à mudança no Código de Processo Penal, mas seu
autor não descarta retomá-la caso as outras alternativas falhem.
Nada impede que o
Congresso trabalhe em todas as frentes possíveis para garantir no Brasil aquilo
que já é prática corrente em quase todo o mundo civilizado. É até importante
que os parlamentares procurem soluções diversas para que não ocorram situações
em que haja conflito entre textos legais. De nada adianta, por exemplo, mudar a
Constituição e manter a redação atual do artigo 283 do CPP – e vice-versa.
Neste sentido, e apesar das declarações de Marco Aurélio e outros ministros, o
Congresso não deveria desistir de incluir no artigo 5.º da Constituição a
prisão após condenação em segunda instância, pois, como afirmamos, a mudança não
pretende abolir nenhuma das garantias constitucionais dos réus.
Qualquer modificação
haverá de ser questionada, seja por quem, de boa fé, defende o garantismo
penal, seja por aqueles que apenas desejam ver a impunidade dos ricos e
poderosos, que podem levar seus processos adiante com recursos sem fim, até,
quem sabe, atingir a prescrição, como já ocorreu com deputados e senadores. Daí
a importância, como afirmou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de
buscar uma solução que traga o máximo possível de segurança jurídica para que
resista às contestações. Essa solução deverá passar pela aprovação de mais de
um projeto – de preferência, a mudança no CPP combinada com uma alteração
constitucional. O caminho escolhido pela Câmara ao querer mudar os artigos 102
e 105 da Constituição, embora tenha sua lógica, também tem um risco: o de ser
lido como mero truque para driblar a cláusula pétrea. A mudança direta no
artigo 5.º, embora a nosso ver possível, também não ocorreria de forma
tranquila, pois há resistência mesmo dentro do parlamento. Neste cenário, a PEC
5/2019 pode despontar como uma possibilidade a ser levada em conta.
Independentemente do caminho escolhido, as dificuldades e as manobras para
retardar a tramitação dos projetos não podem frear os esforços para que o
Brasil deixe de ser um país onde as regras processuais ajudam a fazer o crime
compensar.
Gazeta do Povo - 25.11.2019
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