O abuso de autoridade e os
vetos
derrubados no Congresso
De uma hora para outra, o
presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), decidiu que a reforma da
Previdência poderia esperar. Ela deveria ter passado tanto pela Comissão de
Constituição e Justiça quanto pelo plenário da casa nesta terça-feira, mas foi jogada
para a próxima semana para dar lugar a uma sessão conjunta do Congresso,
convocada às pressas, para analisar os vetos do presidente Jair Bolsonaro ao
projeto de lei de abuso de autoridade, aprovado em agosto deste ano. O
presidente havia vetado um total de 33 itens em 19 artigos. Destes, os
congressistas colocaram de volta 18 itens na lei, enquanto em outros 15
prevaleceu a decisão de Bolsonaro. E, assim como havia ocorrido com os próprios
vetos presidenciais, o resultado final tem pontos positivos e negativos.
Em ocasião anterior, esta
Gazeta já lamentou o fato de Bolsonaro ter deixado na lei trechos mal escritos
– talvez intencionalmente – que complicarão muito a vida de autoridades
honestas, como o artigo sobre a condução coercitiva “manifestamente descabida”,
a investigação estendida “injustificadamente” e o ato de demorar “demasiada e
injustificadamente” para que um juiz devolva um processo do qual pediu vistas.
Com a decisão do Congresso, outros trechos que o presidente havia acertadamente
retirado voltaram para a lei, criando ainda mais ocasiões de revanchismo de
investigados, acusados, réus e condenados contra aqueles que os investigam,
acusam e julgam.
Há uma batalha entre
poderes, em que
muitos não aceitam a possibilidade de serem
investigados e
punidos
É o caso, por exemplo, do
trecho que criminaliza o ato de “constranger o preso ou o detento, mediante
violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a (...)
produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”. Como já lembramos, a
Constituição garante que todo cidadão tem o direito a não se incriminar, e por
isso o texto da lei de abuso de autoridade faz sentido à primeira vista. Mas o
pulo do gato está novamente na redação imprecisa, que daria margem a
interpretações segundo as quais, por exemplo, as prisões preventivas ou
temporárias decretadas no âmbito da Operação Lava Jato se encaixariam nesta
descrição, pois teriam o único objetivo de forçar delações premiadas. Também
retornou à lei a punição para quem der “início ou proceder à persecução penal,
civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe
inocente”, outro texto de redação imprecisa – como decidir quando um indício
leve ou uma denúncia anônima, por exemplo, seria uma “justa causa fundamentada”?
O Congresso até manteve
uma minoria dos bons vetos de Bolsonaro, como aquele referente ao uso de
algemas e à mobilização “desproporcional” de pessoal, veículos ou armas na hora
de executar um mandado, mas o resultado final é indubitavelmente prejudicial.
Policiais, procuradores, promotores e juízes estão agora sujeitos a todo tipo
de processo judicial, com base em uma lei cujos termos são vagos e, portanto,
permitem interpretações as mais diversas. De nada vale argumentar que tais
autoridades terão de ser denunciadas por procuradores e julgadas por
magistrados, como se se antecipasse algum tipo de corporativismo envolvendo
casos de abuso de autoridade, pois o ideal seria que nem chegássemos a esse
tipo de situação: as leis, especialmente no campo penal, precisam ser redigidas
da forma mais clara possível, de forma a reduzir a margem para interpretação e
arbitrariedade. A lei de abuso de autoridade não cumpre esse critério.
A sessão desta terça-feira
é sintomática não apenas pelo conteúdo das deliberações, mas pelo contexto em
que ocorreu. Alcolumbre deixou de lado a reforma da Previdência e convocou às
pressas a sessão conjunta do Congresso em reação a uma operação da Polícia
Federal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que cumpriu mandado de
busca e apreensão nos gabinetes no senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE),
líder do governo no Congresso, e de seu filho, o deputado Fernando Coelho Filho
(DEM-PE), além de outros endereços ligados a ambos. O objetivo era apurar
denúncias de propinas da época em que o senador Bezerra era ministro da
Integração Nacional no governo Dilma Rousseff. Os parlamentares viram na
operação uma afronta às suas prerrogativas, ainda que decisão recente do
Supremo tenha validado operações em dependências do Poder Legislativo,
decidindo que não existe foro privilegiado para imóveis.
Nesta batalha entre
poderes, em que muitos não aceitam a possibilidade de serem investigados e
punidos – e é emblemático que a articulação para derrubar os vetos de Bolsonaro
tenha envolvido o Centrão, repleto de partidos envolvidos até o pescoço na Lava
Jato –, perde o bom combate à corrupção, perdem as autoridades que buscam fazer
seu trabalho de maneira firme e correta, perde o país, e só ganham aqueles que desejam
imunidade e impunidade.
Gazeta do Povo
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