Os vetos necessários à lei
do abuso de autoridade
O presidente Jair
Bolsonaro tem menos de uma semana para sancionar, vetar totalmente ou vetar em
parte a absurda lei sobre abuso de autoridade aprovada pela Câmara dos
Deputados no dia 14 de agosto. Sofrendo pressões de todos os lados, Bolsonaro
já admitiu que, independentemente de sua decisão, irá “apanhar de qualquer
maneira”. Pois, em nome do bom combate à corrupção e para o bem do país, melhor
será que apanhe da bancada da impunidade montada no Congresso e que desde 2017
vem atrapalhando todas as iniciativas desenhadas para dificultar novos esquemas
como os do mensalão e do petrolão, e para facilitar a investigação e a punição
dos responsáveis pela ladroagem.
Vetar o projeto como um
todo, como vêm pedindo vários brasileiros nas mídias sociais e nos protestos de
rua do último dia 25, seria uma oportunidade para que os parlamentares
comprometidos com a ética na política trouxessem de volta o texto apresentado
em 2017 pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), e que contou com a
participação do Ministério Público em sua elaboração. Ele seria um ponto de
partida muito mais adequado para a discussão do que realmente configura o abuso
de autoridade, incluindo até mesmo as famosas “carteiradas” tão ao gosto de
agentes da lei que se consideram acima dela. Serviria, inclusive, para sanar um
problema de fundo do projeto, que é tratar de forma desproporcional certas
condutas, considerando-as crimes passíveis de detenção quando o mais adequado
seria a aplicação de punições administrativas.
São vários os artigos escritos
de maneira vaga, desrespeitando um princípio básico da redação de normas
penais: deixar o mínimo de espaço possível para questões de interpretação
Mas Bolsonaro já fará bem
se seguir o conselho do ministro Sergio Moro, da Justiça, ou do Ministério Público
Federal, e vetar apenas alguns dos artigos. De fato, a tramitação do projeto no
Congresso serviu para retirar alguns trechos mais absurdos do texto, como a
previsão do “crime de hermenêutica”, ao mesmo tempo em que há várias condutas
descritas no projeto aprovado que efetivamente configuram abuso de autoridade.
No entanto, há uma série
de outros dispositivos muito problemáticos – a maioria deles é mencionada nos
pareceres do Ministério da Justiça e do MP que recomendaram vetos a vários
artigos. Há, por exemplo, o artigo 3.º, que legaliza o revanchismo ao permitir
que investigados, acusados, réus e condenados possam processar investigadores e
juízes, caso o Ministério Público não o faça. Melhor seria manter apenas o
caput do artigo, segundo o qual “os crimes previstos nesta lei são de ação
penal pública incondicionada”, excluindo a hipótese de ação privada, mesmo que
com possibilidade de interferência do MP.
A maior parte do debate
tem se concentrado nas ações que passarão a ser consideradas abuso de
autoridade. Os defensores do projeto alegam que há acordo para que apenas o
trecho sobre uso de algemas seja vetado, mas são vários os artigos escritos de
maneira vaga, desrespeitando um princípio básico da redação de normas penais: deixar
o mínimo de espaço possível para questões de interpretação. Não há como
evitá-las completamente – determinar, por exemplo, que um crime é cometido “por
motivo fútil”, ou mesmo se é doloso ou culposo, exige interpretação –, mas,
onde for possível, o texto legal precisa definir de forma precisa as condutas
consideradas criminosas.
E isso não ocorre em
vários dos artigos da lei aprovada pela Câmara. Podemos citar, por exemplo, a
condução coercitiva “manifestamente descabida” no artigo 10; a “procrastinação”
da investigação, estendida “injustificadamente” no artigo 31; ou a demora
“demasiada e injustificada” para devolver um processo do qual se pediu vista,
no artigo 37. Alguns destes artigos foram citados no parecer do MP exatamente
por sua falta de clareza na definição do crime.
O veto integral seria uma
oportunidade de rediscutir o tema, mas Bolsonaro já fará bem se vetar apenas
alguns dos artigos
Outros artigos foram alvo
de críticas do Ministério da Justiça e do MP porque, se aplicados, colocarão freios
a investigações que muitas vezes se iniciam com indícios tênues ou denúncias
anônimas, como já apontou em artigo nesta Gazeta do Povo a promotora Mariana
Bazzo. É o caso do artigo 30, que criminaliza o ato de “dar início ou proceder
à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou
contra quem sabe inocente” – a controvérsia, aqui, reside no conceito de “justa
causa fundamentada”. Como bem diz a nota do MP, “criar-se-á no ordenamento
normas contraditórias. Por um lado, há a previsão de atribuição dos órgãos que
tomarem ciência de uma infração de investigá-la, averiguá-la. Por outro, se se
verificar que a notitia não tinha fundamento, a autoridade poderá ser
responsabilizada criminalmente”.
Boa parte da Câmara dos
Deputados não esconde que eventuais vetos serão muito mal vistos pelos
parlamentares. Mas esta é uma briga que precisa ser comprada, em nome do futuro
do combate à corrupção no Brasil. A necessidade de atualizar a legislação sobre
abuso de autoridade virou pretexto para que parlamentares encrencados com a
Justiça se vinguem de juízes e procuradores sem nem mesmo ter de mostrar o
rosto, como evidenciou o processo de votação que resultou na aprovação do
texto. Na Itália do pós-Mãos Limpas, os políticos corruptos terminaram vencendo
a queda de braço. O Brasil não pode seguir pelo mesmo caminho.
Gazeta do Povo
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