A esquerda que não
enrubesce
Com mais de uma década de
atraso, a ONU enfim reconhece o que está à vista de todos, todos os dias: a
catástrofe humanitária na Venezuela não é resultado de crise econômica, de
conspiradores americanos, de traidores da pátria, do preço do petróleo, do Opus
Dei, mas sim do meticuloso planejamento chavista. Era para dar naquilo mesmo,
porque todo fracasso político tem história. No caso do socialismo, quando dá certo,
vira a Venezuela ou coisa pior.
Frise-se que o relatório
não vem da oposição, da imprensa golpista ou de agências dos EUA, mas do Alto
Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, presidido por Michelle Bachelet.
Mesmo quem não é dado a conspirações (eu, por exemplo) sabe que os órgãos
internacionais costumam ser bastante, digamos, condescendentes ante certas
aventuras autoritárias em periféricos rincões.
Os números assombram: “as
mortes atribuídas a pessoas que resistiram à prisão totalizaram 5.287 em 2018 e
1.569 até 19 de maio deste ano, segundo dados do governo – mas 7.523 em 2018 e
2.124 até maio, segundo ONG local”.
Reparem que, “segundo
dados do governo”, foram quase sete mil pessoas mortas em dois anos. Isso é o
que Maduro julga razoável apresentar às visitas, como demonstração de que eles
matam, sim, mas com responsabilidade. Aos assassinatos resta somar as prisões,
a tortura, os desaparecimentos, a bancarrota econômica e a destruição do
sistema político e, voilà!, temos uma obra digna da memória de Fidel Castro e
Ernesto Che Guevara.
Aqui no Brasil, entre o
silêncio eloquente e a adversativa canalha, há quem insista em pecar por meio
de atos, palavras e omissões. Dias atrás, comentei no Quinta Categoria, o
inacreditável Fernando Haddad tergiversou, enrolou, fez que não viu, olhou prum
lado e tocou pro outro, coçou o nariz, persignou-se três vezes, mas não foi
capaz de responder à singela pergunta de Marcelo Tas com a única resposta
moralmente possível: sim, a Venezuela é uma ditadura, sem “mas” nem “contudo”
ou “veja bem” que suavizem a prosa.
O soldado raso do petismo
não enrubesceu ao atribuir à oposição parte da responsabilidade pelos crimes do
regime. Vocês sabem, eles são fogo na roupa. Os meninos não têm juízo e se
jogam debaixo dos tanques do governo, ninguém reparou? O apresentador deu
ao entrevistado a chance de se redimir, soprou a resposta certa ao aluno
relapso, mas não teve jeito: zero pra ele.
É de uma desfaçatez
paralisante: tratar a resistência legítima e desesperada ao ditador como causa
mortis. Por muito menos, em números absolutos e relativos, a esquerda se
apropria da história recente brasileira e a manipula como quer. Houve aqui,
sim, uma ditadura militar; que matou, torturou, sequestrou e suspendeu direitos
políticos e liberdades civis. Por que o critério aplicado no Brasil não vale
para a Venezuela, nunca valeu para Cuba, China ou Rússia? Mistérios.
Pois agora, e de uma vez
por todas, o relatório divulgado pela ONU – e, a seu modo, confirmado por
Nicolás Maduro, com alguns pequenos reparos aritméticos – serve de bofetada
àqueles que, como Haddad, nunca tiveram coragem para se desprender das versões
mais retrógradas e ditatoriais da esquerda. Ou, pensando bem, não foi de
coragem a falta, mas de vontade decência.
Afinal de contas, tantas
vezes Gleisi Hoffmann, de corpo presente, e o PT, enquanto instituição,
reforçaram seu apoio ao chavismo e chancelaram suas práticas. Há anos, há
meses, há dias. Tudo em nome de quê? Em nome de uma sorte qualquer de oposição
aos fantasmas do capitalismo, dos “estadunidenses”, da classe média, do PSDB,
do eleitor do Jair Bolsonaro.
Falando nele, é inevitável
reconhecer que sua vitória, mais do que produto de suas discutíveis virtudes, é
efeito colateral da compreensível repulsa aos defeitos, alianças e crimes do PT
e de partidos satélites, no Brasil e arredores. Discordo da escolha, defendo a
tese de que havia outras opções, mas democracia é isso aí. Tenho amigos (de
esquerda) bastante decentes que ainda não entenderam o resultado eleitoral.
Perguntam-se: “Onde foi que nós erramos?” Respondo: “Continuem apostando em
trogloditas de esquerda e terão como adversários trogloditas de direita”. Esse
é o jogo.
Muitas foram as
explicações de quem votou no Capitão, mas pelo menos uma delas é genuína e
comum a todos os eleitores: o atraso representado tão bem pela esquerda
bolivariana, que tem sua versão Herbert Richers em Lula et caterva, foi o maior
cabo eleitoral do então candidato do PSL. Os extremos se merecem e se atraem.
Gustavo Nogy
Gazeta do Povo
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