Reconstruindo Chico
Buarque
Meu primeiro texto a
viralizar nas redes sociais, em 2015, foi uma carta aberta ao Chico Buarque.
Nela eu me apropriava dos seus versos para confrontá-lo por ter se tornado
cúmplice de malandro oficial, de malandro investigado na Polícia Federal. Por
defender quem não tem decência, nem nunca terá; quem não tem vergonha, nem
nunca terá; quem não tem limite. Por não se importar em ver a Pátria Mãe, tão
distraída, ser subtraída em tenebrosas transações.
Dizia-lhe que ele estava
diferente, que já não o conhecia mais. Trocando em miúdos, que, apesar dele — e
do PT — amanhã haveria de ser outro dia.
Eu era um pote até aqui de
mágoa, claro. A trilha sonora da minha infância incluía ver a banda passar
cantando coisas de amor. Depois houve dias de me sentir como quem partiu ou
morreu, ao meio-dia só pensar em dizer não, comer feijão com arroz como se
fosse um príncipe e catar a poesia entornada no chão.
Chico me ajudou a pensar
em Deus como um cara gozador, que adora brincadeira. A perder a vergonha de
fazer amor até mais tarde e ter muito sono de manhã. A me supor capaz de subir
uma montanha não como anda um corpo, mas um sentimento; de tirar o chão dos
pés, de criar raiz e me arrancar, de me indagar se é perigoso a gente ser
feliz.
Chico foi a voz dos que,
ouvindo passos já no vão da escada, sabiam que não havia nada a fazer senão
chamar o ladrão — e pedir que afastassem de nós este “cale-se!”. Foi a mais
perfeita tradução daqueles tempos de um pé na soleira e um pé na calçada, de
uma mulher chamada Angélica que só queria embalar seu filho que morava na
escuridão do mar.
Mas eis que chegou o
destino e carregou Chico Buarque para lá — para o lado dos que apoiam
ditaduras, fecham os olhos às maracutaias, se indignam seletivamente. Em algum
momento sua estrada entortou, e ele resolveu ir até o fim. Se é que não tinha
sido assim desde sempre, e o dono destes neurônios não via.
O PT nos roubou uma década
e meia. Desviou bilhões. Nos tirou a esperança de um país mais justo, mais
solidário, sem miséria. De um Brasil de todos. E, de quebra, nos tomou Chico
Buarque.
Pegamos ranço dele, da sua
voz de taquara rachada, da sua prática de louvar o subúrbio e a favela, e morar
no Leblon. De se derreter por Havana, Luanda e Manágua, e tirar férias em
Paris. Tornamo-nos macarthistas tardios, fiscais da coerência alheia. Fizemos
seu funeral no mesmo cemitério dos mortos-vivos onde o cartunista Henfil um dia
sepultara Elis Regina, Carlos Drummond, Clarice Lispector e todos os que
cometessem o sacrilégio de colaborar com o adversário político (na ocasião, o
regime militar).
Jorge Amado não é só dos
baianos ou de quem cultua os orixás. Adélia Prado não é exclusiva das devotas
da Festa do Divino de Divinópolis, em Minas Gerais. Por que haveria Chico
Buarque de ser monopólio da sua seita?
Se Vinicius de Moraes,
também de esquerda, fosse vivo e frequentasse o palanque de Lula, Dirceu,
Gleisi e Dilma, nosso amor por ele seria finito enquanto durasse essa opção
política? Ou continuaríamos a amar seus versos por toda a nossa vida?
Trataríamos Tom Jobim a pau e pedra? Negaríamos a Nara Leão a liberdade de ter
opinião?
Santo Agostinho pregou
odiar o pecado e amar o pecador. Dá para seguir sua lição ao revés: desdenhar
da ideologia do autor e amar a obra. Até porque, ao contrário da relação
pecado/pecador, não há vínculo entre o marxismo e a métrica, a acumulação do
capital e a riqueza da rima, a ditadura do proletariado e a transcendência da
poesia. “Mesmo miseráveis os poetas, os seus versos serão bons”...
Chico, o eleitor, tem o
direito de professar ideias contrárias às da maioria da população — direito
inalienável numa democracia e utópico nos regimes que ele apoia. Chico, o
compositor, é parte da nossa memória afetiva, é patrimônio nacional, não
importando se a História passou na janela, só ele não viu.
O PT, que inventou o “nós
x eles”, ora, tenha a fineza de desinventar. De nossa parte, parar de jogar
pedra no Chico e de adorá-lo pelo avesso é uma forma de começar a reconstruir a
nós próprios.
Eduardo Affonso
O Globo
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