O Senado prepara a mordaça
Duas forças praticamente
antagônicas se encontraram e se fundiram no Congresso Nacional nos últimos
anos. A primeira, benéfica, era a das Dez Medidas Contra a Corrupção, projeto
de iniciativa popular que chegou à Câmara dos Deputados com o respaldo de 2 milhões
de assinaturas. Apesar de as medidas iniciais contarem com alguns pontos mais
controversos, a maior parte da iniciativa era meritória, buscando reduzir a
impunidade e facilitar a condução das investigações e dos processos relativos a
casos de corrupção, tão comuns no Brasil. Outra força, em sentido contrário,
nascera no Senado e pretendia inviabilizar o combate à ladroagem: o projeto
que, sob o pretexto de combater o abuso de autoridade de magistrados e membros
do Ministério Público, praticamente deixava-os de mãos atadas, à mercê da fúria
de investigados e condenados.
O encontro inusitado
deu-se na Câmara dos Deputados, no fim de 2016. Enquanto os parlamentares
destruíam as Dez Medidas com as famosas “emendas da meia-noite”, votadas quando
a sessão legislativa já avançava noite adentro, acrescentaram no projeto
diversos casos que configurariam abuso de autoridade da parte de juízes e
membros do MP – a bancada da impunidade até tentara emplacar a expressão “crime
de responsabilidade”, mas pelo menos nisso acabou derrotada.
O que o Senado vende à
sociedade como sendo a aprovação das Dez Medidas Contra a Corrupção é, na
verdade, a perseguição a juízes e promotores por “abuso de autoridade”
A versão dos deputados não
incluía diversas aberrações que o Senado aprovaria, meses depois, em um outro
projeto, relatado pelo hoje ex-senador Roberto Requião (MDB-PR) e que contou
com forte incentivo do então presidente da casa, Renan Calheiros (MDB-AL). Mas
nem por isso era menos perigosa. O que o texto de Calheiros e Requião tinha de
explícito, o dos deputados tinha de sorrateiro. Ao trazer uma série de
expressões intencionalmente vagas, como “ser patentemente desidioso no
cumprimento dos deveres do cargo”, “atuar com motivação político-partidária” ou
“proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas
funções”, a Câmara criou uma série de possibilidades de perseguição contra
magistrados, procuradores e promotores. Além disso, os deputados ainda
decidiram que os próprios ofendidos – ou seja, investigados, réus e condenados
– poderiam processar seus investigadores e julgadores se o MP não oferecesse
queixa dentro do prazo legal, o que na prática permitiria represálias contra
juízes e membros do MP.
Este texto, renomeado como
PLC 27/2017, dormiu nas gavetas do Senado desde o início de 2017 até março
deste ano, quando Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi designado relator da proposta na
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa. Após as denúncias do site de
esquerda The Intercept Brasil, que tem publicado supostas conversas entre
Sergio Moro, ex-juiz responsável pela Operação Lava Jato e atual ministro da
Justiça, e o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da Lava Jato, o
Senado viu a oportunidade para voltar à carga. O parecer foi lido em 12 de junho
e será votado pela CCJ no dia 26, quarta-feira, indo a plenário no mesmo dia,
de acordo com os planos dos senadores, uma "tramitação-relâmpago" que
em muito lembra a do projeto de Calheiros e Requião em 2017.
A presidente da CCJ,
Simone Tebet (MDB-MS), afirmou que os brasileiros poderiam ficar tranquilos,
porque o texto que o Senado analisará faz várias melhorias em comparação com o
que veio da Câmara. Nos artigos que tratam do abuso de autoridade, por exemplo,
Pacheco incluiu trechos segundo os quais as condutas descritas só configuram
crime “quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar
outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou
satisfação pessoal”. Além disso, o texto passa a afirmar que “a divergência na
interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si
só, abuso de autoridade”, afastando de vez a possibilidade do chamado “crime de
hermenêutica”, que já não existia no projeto aprovado na Câmara, mas era
previsto nas primeiras versões do antigo projeto de abuso de autoridade
aprovado no Senado. Por fim, Pacheco ainda trouxe de volta uma das Dez Medidas
originais, a chamada “ação civil de extinção de domínio”, que seria usada para
recuperar bens obtidos de forma comprovadamente ilícita, ainda que seus donos
não tenham sido condenados na esfera penal pela Justiça.
Mas essas poucas mudanças
são insuficientes para conter o caráter persecutório do texto. Afinal,
permaneceram no projeto as expressões vagas que podem justificar um processo
contra um juiz ou membro do MP por abuso de autoridade. Além disso, Pacheco também
manteve a possibilidade de o ofendido pelo suposto abuso acionar a Justiça, o
que nos permite prever uma enxurrada de denúncias e processos que, mesmo
infundados, tirarão tempo precioso de investigadores e julgadores, chamados a
se defender daqueles que tentam colocar na cadeia por crimes de corrupção.
Em resumo, o resultado do
choque entre aquelas duas forças poderosas – de um lado, a vontade popular de
combater a corrupção; de outro, o desejo dos corruptos de escapar impunes e,
ainda por cima, se vingar de investigadores e julgadores – está sendo a vitória
dos paladinos da impunidade. Qualquer ponto positivo que o PLC 27/2017 tenha
acaba eclipsado pela maneira como trata o abuso de autoridade. Se realmente
quisesse uma boa lei sobre o tema, Pacheco poderia ter aproveitado o projeto
original apresentado em 2017 por Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que acolheu
sugestão da Procuradoria-Geral da República e de vários membros do MP,
criminalizando várias condutas que realmente configuram abuso de autoridade,
sem montar armadilhas para juízes e procuradores. Enquanto o PLC 27 não for
votado, há tempo para correção, e algumas emendas apresentadas depois da
leitura do parecer pretendem suprimir alguns dos trechos problemáticos, mas não
todos. Da forma como está, o que está sendo vendido ao povo como a aprovação das
Dez Medidas Contra a Corrupção vai marcar, na verdade, o início do fim do
combate à corrupção.
Gazeta do Povo – 22.06.2019
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