O sufrágio universal,
direto e secreto consagrado pela Constituição de 1988 é peça de comércio para
muitos brasileiros. Seja pelas vinculações dos eleitores com a máquina pública,
seja pela exploração da pobreza ou da sem-vergonhice, quando um voto pode valer
um prato de comida, um pé de botina, uma dentadura ou um botijão de gás, fato é
que, mais de três décadas após a redemocratização do País, a compra de votos e
o voto de cabresto não romperam os grilhões que mantêm porções do território
nacional na República Velha e ainda desafiam o viço de nossa democracia no
século 21.
Um levantamento feito
pelo Estado com base em relatórios da Polícia Federal (PF), obtidos
por meio da Lei de Acesso à Informação, mostrou que alguns Estados das Regiões
Norte e Nordeste lideram, proporcionalmente, o ranking de crimes eleitorais
cometidos entre 2006 e 2016, década que compreende as seis últimas eleições
realizadas no País.
Roraima (12,9), Acre
(10,4), Rio Grande do Norte (8,2), Paraíba (7,3), Tocantins (6,6) e Amapá (6,4)
foram os Estados que apresentaram o maior número de inquéritos policiais que
apuram crimes eleitorais por grupo de 100 mil eleitores. Os dados dos
inquéritos informados pela Divisão de Assuntos Sociais e Políticos da PF foram
comparados com a quantidade de eleitores registrados em cada um dos Estados.
É de lamentar a
constatação da atualidade da obra clássica de Victor Nunes Leal – Coronelismo,
enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil – sete décadas
após sua publicação. Os dados apurados pela reportagem indicam que permanecem
mais vivos do que nunca os mecanismos de perpetuação do atraso nos grotões do
País.
De acordo com Helder Silva
Barbosa, secretário judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba, houve
uma “institucionalização” do voto de cabresto em algumas regiões do País. “Os
prefeitos ameaçam terceirizados ou dizem aos eleitores que as escolas vão
fechar, o vale-gás não será mais concedido e aquele contrato terceirizado será
cancelado”, disse o secretário.
A subversão do inalienável
direito ao voto é muito mais grave em cidades menores, onde um grande número de
eleitores está vinculado ao serviço público, mais suscetível às pressões
políticas. “Vive-se mais dentro da máquina pública do que em outras regiões”,
explica Diogo Rais, professor de Direito Eleitoral da FGV São Paulo.
O fato de a compra de
votos e o voto de cabresto estarem mais associados às localidades do interior
do País não significa que cidades grandes, teoricamente menos expostas às vicissitudes
do mandonismo local, estejam imunes àquelas práticas antidemocráticas. Um olhar
atento aos sobrenomes que há muito figuram no rol de vereadores de uma cidade
como São Paulo, por exemplo, e o grau de desenvolvimento das regiões que, em
tese, eles representam há de preocupar todos os que têm apreço pelos valores
democráticos.
O esfacelamento da coluna
central da democracia, o voto livre e direto, impõe diligência máxima na
apuração dos crimes de natureza eleitoral pela Polícia Federal e por outros órgãos
de vigilância e controle, como a Justiça Eleitoral. Aqui não há que estabelecer
uma gradação entre crimes, como se a subversão da vontade livre e consciente
dos eleitores fosse menos grave frente a tantos outros delitos com os quais as
forças policiais têm de lidar diariamente. Não haverá saída democrática para as
crises por que passa o País se o sagrado direito ao voto não for respeitado em
sua plenitude.
O antídoto contra a compra
de votos e o voto de cabresto é a educação do povo. Somente com acesso à
educação de qualidade o cidadão há de criar os próprios meios – intelectuais e
materiais – para se ver livre da influência nefasta dos algozes de seu
escrutínio. Este é um processo lento, mas está demorando demais. A democracia é
uma obra necessariamente inacabada. Pode, e deve, ser constantemente
aprimorada. No caminho, impõe-se o fortalecimento dos mecanismos de proteção ao
seu livre exercício e também das instituições que têm por ordem constitucional
respaldá-la. O voto comprado, por cabeça ou no curral, deveria fazer parte de
um passado que envergonha – jamais parte do presente.
Portal Estadão, em
25/07/2018
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