Eliane Cantanhêde
Tudo nestes tempos revoltos vira uma guerra insana e até
cruel na internet e é exatamente esse o caso, agora, da bombástica revelação da CIA de que o então presidente Ernesto
Geisel transformou a execução de opositores em
política de Estado. Isso mexe com as mais profundas feridas e as mais
arraigadas ideologias, mas a radicalização, para qualquer lado, continua sendo
o pior caminho.
Como ponderou o presidente Michel Temer, em conversa comigo na sexta-feira, não se trata de uma versão
nacional, mas da CIA, e nem tudo o que a CIA diz é necessariamente verdade.
Acrescente-se: os Estados Unidos invadiram e aniquilaram o Iraque, sem aval do
Conselho de Segurança da ONU, com base na informação da sua agência de
inteligência de que Saddam Hussein desenvolvia sofisticadas armas químicas e
biológicas. Foi um erro grosseiro. Ou uma mentira intencional.
O documento trazido à luz pelo professor Matias Spektor é
uma nova frente de pesquisa sobre a verdadeira identidade e os reais propósitos
do governo Geisel. Mas funciona como uma delação premiada: é uma versão,
precisa ser recheada de provas. Dúvidas: como a reunião e a decisão de Geisel
jamais vazaram no próprio Brasil? Por que um ou mais generais envolvidos
contariam justamente para os norte-americanos, se eles se baseavam no velho
nacionalismo que exalava ojeriza aos EUA? Para agradar a Washington?
Mas, “se non é vero, é ben trovato”. Apesar da “distensão
lenta, gradual e segura” de Geisel, a ditadura continuou executando e
torturando os adversários – ou “subversivos perigosos”, como registra a CIA.
Presidentes não são obrigados a saber tudo (assim como
Lula nunca soube do mensalão?) e Geisel poderia até não saber de uma ou duas
mortes. Mas de tantas? Ele demitiu o general Ednardo D’Ávila Mello após o
assassinato de Wladimir Herzog, mas pelas mortes e torturas? Ou porque ele
desafiava a abertura e o que o então presidente mais prezava: sua autoridade?
O fato é que o documento atinge profundamente a biografia
de Geisel, com quem eu conversava uma a duas vezes por ano, depois da
Presidência. E ele sempre com muito cuidado de não se vender como o “mocinho”
lutando contra os “bandidos” do seu próprio regime. Criticava genericamente a
“linha dura”, mas nunca foi enfático, indignado, contra seus métodos.
Subliminarmente, era como se fossem um “mal necessário”.
A partir da CIA, há dois personagens num só: o ditador
determinado a devolver o País aos civis e o pragmático convencido de que tinha
de dançar conforme a música dominante no regime: a favor de matar e torturar,
inclusive quase meninos, em nome do combate ao comunismo. Esse confronto entre
as intenções de Geisel e sua submissão ao regime é claro na obra magistral de
Elio Gaspari sobre a ditadura. E foi bem resumido, ontem, por Spektor: “O que
Geisel fez foi chamar para si a responsabilidade (da repressão), para poder
abrir”. Ceder para avançar.
Seria mais fácil, e aplaudido, escrever um texto
apaixonado contra o ditador assassino ou, muitíssimo pior, em defesa da guerra
contra o comunismo. A política e a história, porém, não se fazem com paixão. Se
comprovada, a informação da CIA derruba Geisel do pedestal de quem jamais
compactuou com os “desaparecimentos”. Mas não apaga a realidade de que ele
efetivamente se empenhou pela abertura. Não existe “meio ditador”, mas Ernesto
Geisel foi um ditador que operou para derrubar a ditadura.
Que o documento da CIA reabra serenamente a Comissão da
Verdade e o debate sobre o reconhecimento de responsabilidade das Forças
Armadas, como defende seu último presidente, Pedro Dallari. A verdade às vezes
dói, mas nada como a verdade para curar velhas e evitar futuras feridas.
Publicado no portal do jornal Estado de São Paulo em
13/05/2018
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