O problema da doação empresarial*
Quando se observa que a maioria das empresas doava para
mais de um candidato e mais de um partido, em geral aqueles que tinham mais
chances de vencer, não é difícil concluir que o objetivo não era cívico ou
ideológico, e sim estratégico – ter no poder poderosos políticos que lhe fossem
devedores
Constitui flagrante distorção, no debate acerca das
doações eleitorais feitas por empresas, o argumento segundo o qual o grande
problema desse tipo de financiamento é o ensejo à corrupção. Conforme esse
raciocínio, bastaria então melhorar os mecanismos de fiscalização e dificultar
os acertos criminosos entre doadores e candidatos para que as doações
empresariais passassem a ser aceitáveis, como parte do jogo legítimo da
democracia.
Como o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de
manifestar, em julgamento encerrado em setembro de 2015, a questão central das
doações eleitorais feitas por empresas não é o eventual caráter corrupto da
iniciativa. Naquela ocasião, os ministros que deram vitória, por 8 votos a 3, à
tese de que essas doações são inconstitucionais sustentaram, como ponto
principal de sua argumentação, que empresas não podem ser equiparadas aos
cidadãos.
Felizmente – no momento em que os políticos buscam
freneticamente maneiras de obter recursos para as próximas eleições e, diante
das dificuldades de aprovar a criação de um fundo público para esse fim, voltam
a falar em doações empresariais –, a maioria dos ministros do Supremo, conforme
noticiou o Estado, continua convicta de que esse tipo de financiamento é
nocivo à democracia. Ou seja, se os parlamentares decidirem aprovar algum
projeto que restabeleça as doações empresariais, é quase certo que o Supremo se
manifeste contra a iniciativa e a derrube, por sua inconstitucionalidade.
A corrupção de empresas financiadoras e políticos
financiados é apenas uma consequência do problema de fundo acarretado pelas
doações empresariais, qual seja, o de que há evidente captura do poder político
pelo poder econômico. Nada menos que três princípios constitucionais são
violados nesse caso: o princípio da isonomia, em que todos são considerados
iguais perante a lei e o voto de cada um tem o mesmo valor; o princípio
democrático, em que se diz que todo poder emana do povo, cuja soberania é
exercida por meio do voto; e o princípio republicano, segundo o qual a República
brasileira se constitui em Estado Democrático de Direito.
Durante o julgamento no Supremo, a presidência do Senado
apresentou parecer em que reconhecia a possibilidade de violação dos princípios
acima descritos, “constituindo-se em evidências prima facie da
inadequação do regramento atual em face das expectativas da população e dos
objetivos do processo eleitoral”, mas afirmou que o sistema eleitoral dispunha
de mecanismos capazes de “equilibrar a disputa eleitoral”, como “a fiscalização
das contas, o limite de gastos de campanha, a distribuição de recursos públicos
para todos os partidos e candidatos”, entre outros.
Como os sucessivos escândalos de corrupção demonstram à
exaustão, os tais “mecanismos” fracassaram de forma retumbante, mas não é esse
aspecto que desqualifica, como frontalmente antidemocrático, o sistema que
permite doações empresariais de campanha, e sim o fato incontestável de que não
se pode falar de “direitos políticos” para pessoas jurídicas.
Não é incomum que empresas assumam causas e bandeiras,
influenciando o debate político, mas a democracia não depende disso para
funcionar, ao passo que a participação dos cidadãos comuns, com seu voto, é
indispensável. Ademais, quando se observa que a maioria das empresas doava para
mais de um candidato e mais de um partido, em geral aqueles que tinham mais
chances de vencer, não é difícil concluir que o objetivo não era cívico ou
ideológico, e sim estratégico – ter no poder poderosos políticos que lhe fossem
devedores.
Eis aí, em essência, o problema envolvendo as doações
empresariais de campanha. Não se trata de providenciar mais ou menos
fiscalização, tampouco de proibir que empresas doadoras firmem contratos
públicos, como já se cogita aqui e ali. Trata-se de respeitar princípios
constitucionais, aos quais nenhuma lei, por mais sofisticada e bem-intencionada
que seja, pode se sobrepor.
*Publicado no Portal Estadão em 27/08/2017
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