Delações sem fim, criminosos sem pena*
Conforme noticiou o Estado, o ex-governador do Rio
de Janeiro Sérgio Cabral, preso desde novembro passado, estuda pedir acordo de
colaboração premiada. Ciente de que são bastante reduzidas suas chances de
derrubar por meio de habeas corpus os três decretos de prisão expedidos contra
ele, almeja melhorar sua situação dando informações relevantes para a
elucidação de outros crimes e a responsabilização de outros criminosos. Cabral
não é o primeiro caso nem parece que será o último. Volta e meia divulga-se,
por exemplo, a disposição do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha de colaborar
com a Justiça e assim ter reduzidas suas penas. Desde a instauração da Operação
Lava Jato, o País assiste a um bom número de delações, feitas e outras tantas
ainda em andamento. Agora, a delação mais esperada é a de Marcelo Odebrecht,
ex-presidente da empreiteira que leva o nome de sua família. Só nesse ramo da
Lava Jato consta que haja 77 delações.
Não há dúvida de que as delações premiadas podem ser um
ótimo instrumento de investigação, rompendo o silêncio e a cumplicidade das
organizações criminosas. É um acordo – o Estado oferece um significativo
benefício na pena do criminoso em troca de informações que permitam elucidar
outros e maiores crimes. Essa foi a experiência internacional que motivou o
Brasil a introduzir, em seu ordenamento jurídico, a possibilidade da
colaboração premiada.
Atualmente, várias são as leis que preveem a delação,
como a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), a Lei de Combate à Lavagem de
Dinheiro (Lei 9.613/1998) e a Lei de Políticas Públicas sobre Drogas (Lei
11.343/2006). No momento, a Lei 12.850/2013, sobre as organizações criminosas,
é a que contempla de forma mais completa a colaboração em troca da redução de
penas. Seu art. 4.º diz: “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o
perdão judicial, reduzir em até dois terços a pena privativa de liberdade ou
substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e
voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa
colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: a identificação dos
demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais
por eles praticadas; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de
tarefas da organização criminosa; a prevenção de infrações penais decorrentes
das atividades da organização criminosa; a recuperação total ou parcial do
produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização
criminosa; a localização de eventual vítima com a sua integridade física
preservada”.
Comparada com a experiência internacional, trata-se de
uma legislação bastante generosa com os delatores. Não raro se permite, em
outros países, apenas um único colaborador da Justiça para cada crime. Aqui,
parece não haver qualquer restrição de número de delatores. Todos dizem um
pouco mais do que os investigadores já sabiam e ao final todo mundo tem sua
pena reduzida. Ao contrário do objetivo inicial, a delação passa a ser vista
como um meio para a impunidade, ainda que relativa. Todo mundo fala algo e todo
mundo vai para casa mais cedo. Ora, isso é evidente abuso do instrumento da
delação.
Além dessa banalização, aqui parece se aceitar a delação
de todas as pessoas envolvidas no crime, seja qual for a sua posição
hierárquica na organização criminosa. O habitual em outros países é que a
colaboração premiada seja um meio para chegar aos líderes do crime. No Brasil,
qualquer um, mesmo que esteja na mais alta posição na cadeia do crime, pode
delatar. É de perguntar: quem o chefe da quadrilha irá delatar? Vale a pena
diminuir a pena do chefe da quadrilha em troca de informações menores? Corre-se
o risco de que o desejo de que nenhum crime fique sem solução – fazendo mil e
um acordos de delação premiada – leve a que nenhum criminoso cumpra por
completo sua pena. Tal sistema não é muito racional.
Se os elementos probatórios obtidos contra o
ex-governador Sérgio Cabral são tão sólidos que ele só vê meio de diminuir a
pena com a delação premiada, quais informações tão relevantes ele terá a dar
para que se firme um termo de colaboração e sua pena seja reduzida?
Até aqui a delação teve um papel essencial para o bom
andamento da Lava Jato. Por que, então, banalizar seu uso?
*Publicado no Portal Estadão em 30/01/2017
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