Danem-se as
criancinhas
O argumento da
"democratização do acesso à cultura" sempre foi um abre-te, sésamo para
produtoras abocanharem verbas da Lei Rouanet. Mas a Logística Planejamento
Cultural foi além. A justificativa que apresentou ao Ministério da Cultura para
pedir a aprovação do projeto que levaria 11 000 estudantes de escolas públicas ao teatro é
quase um poema: "A arte atravessa. Ela tem o poder de atravessar.
Atravessar universos, histórias, limites, personagens, sentimentos, pessoas.
Esse projeto quer mostrar a potência do teatro como elemento de propagação de
cultura, despertando a percepção de crianças sobre esse elemento artístico.
Queremos que elas atravessem todas as barreiras e entrem no mundo mágico do
teatro". Pois o dinheiro captado para apresentar "o mundo mágico do
teatro" a crianças carentes acabou usado para pagar despesas de uma festa
de casamento para 120 pessoas em Jurerê Internacional, a praia mais badalada de
Florianópolis, conhecida como "a Ibiza brasileira". Se algo
atravessou limites nesse caso, foi o cinismo.
A Lei Rouanet,
criada em 1991, autoriza grupos ou artistas que tenham projetos culturais
aprovados pelo Ministério da Cultura a captar dinheiro com empresas, que, em
troca, ganham o direito de deduzir do imposto de renda parte do valor do
patrocínio. Segundo a Polícia Federal, a Logística era uma das onze empresas
usadas pelo Grupo Bellini Cultural para desviar dinheiro destinado ao fomento
da cultura para o bolso dos seus sócios, entre eles Felipe Vaz Amorim, o noivo
de Jurerê, seu irmão, Bruno Vaz Amorim, e seu pai, Antonio Carlos Bellini
Amorim, todos presos na semana passada. No casamento de Felipe, o cachê de 13 216 reais pago ao cantor sertanejo Leo
Rodriguez, por exemplo, saiu do dinheiro captado pela Logística. Como confirma Lincoln Porto, advogado
da empresa que assessora o cantor: "Eles pediram que constasse no corpo da
nota fiscal que a despesa se referia ao projeto tal". O projeto
"tal" era o das criancinhas carentes que precisavam conhecer a magia
do teatro e chamava-se Minha Cidade. Junto com ele, a Logística apresentou um
segundo projeto ao MinC, batizado de Caminhos Sinfônicos (objetivo: organizar
apresentações gratuitas de música clássica para mostrar que o gênero "não
é um privilégio da elite"). Com a aprovação dos dois projetos, a Logística
foi autorizada a captar 1,8 milhão de reais no mercado. A PF não sabe se esse
valor foi integralmente usado para bancar as despesas do casamento.
Segundo os
investigadores, em vinte anos a Bellini Cultural recebeu autorização para
captar 180 milhões de reais por meio de justificativas fajutas encaminhadas ao
Ministério da Cultura. A polícia já sabe que boa parte do dinheiro foi usada
para contratar artistas conhecidos que se apresentavam a seletos grupos ou em
festas de empresas. Por intermédio da Bellini, e cortesia da Lei Rouanet, um
grupo atacadista de alimentos, por exemplo, bancou a apresentação da banda Jota
Quest a 4 000 convidados, e um dos escritórios de advocacia mais renomados de São Paulo contou com show do comediante Fábio Porchat em sua festa de aniversário. Segundo o Ministério Público, há cinco anos o MinC foi
informado das fraudes cometidas pela Bellini. Mesmo assim, seguiu aprovando os
projetos do grupo. Quem fez vista grossa à farra e por que motivo são as
perguntas a que o MP e a polícia pretendem responder em breve.
Fonte:
Veja.com/Conteúdo
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