Cardozo vai à feira*
Maçãs, cenouras e uvas. Foi com um prosaico exemplo de um
cidadão que vai à feira que o advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo,
tentou convencer os deputados da comissão especial do impeachment que as
“pedaladas fiscais” cometidas pela presidente Dilma Rousseff não eram nada de
mais. O exemplo, que também está na página 95 da defesa escrita enviada à
comissão, foi apresentado por Cardozo no melhor estilo “vou desenhar para vocês
entenderem”. No entanto, por mais eloquente e emotiva que tenha sido a defesa
apresentada pelo advogado-geral, ela não faz mais do que requentar velhos e
novos clichês.
Cardozo tentou fazer parecer que as “pedaladas” não foram
exatamente um empréstimo, o que é proibido pela legislação. Se fôssemos usar
outra comparação similar às do advogado-geral, no raciocínio de Cardozo elas se
pareceriam muito mais com o uso do limite de contas bancárias que permite ao
correntista ficar com saldo negativo por poucos dias, até que reponha o valor.
Mas, na realidade, as “pedaladas” foram muito mais que isso. Bancos estatais
bancaram dezenas de bilhões de reais correspondentes a diversas despesas do
governo, sem que fossem ressarcidos pelo Tesouro Nacional, por longos períodos
de tempo. É exatamente o tipo de operação que os artigos 36 e 38 da Lei de
Responsabilidade Fiscal proíbem expressamente.
Este é o núcleo do pedido de impeachment, baseado no
crime de responsabilidade cometido por Dilma ao manipular o orçamento federal.
Mas Cardozo não se contentou em fazer uma defesa técnica. O advogado-geral
tentou desqualificar a própria intenção de se pedir o impeachment, recorrendo,
como não poderia deixar de ser, à nova variante do chavão do “golpe”. Já não se
insiste mais no “impeachment é golpe”, facilmente desmentido pela presença
desse recurso na legislação e na sua aplicação em um passado nem tão distante.
Agora diz-se que “impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”, seguido
da afirmação de que não existe tal crime cometido por Dilma – uma evidente
falsidade, diante da dimensão das “pedaladas”.
“Não é qualquer irregularidade, não é qualquer situação
de desrespeito tangencial à lei que permite o impeachment. Não há impeachment
no sistema presidencialista sem situação de gravidade extrema”, afirmou
Cardozo, sem definir exatamente o que seria uma “situação de gravidade
extrema”, apostando na confusão e na subjetividade para defender Dilma. Ora, as
situações que dão razão para o impeachment estão muito claras na Lei 1.079/50 e
na Constituição. São circunstâncias objetivas, e não avaliações subjetivas como
“situações de gravidade extrema”. Para olhos incautos, maquiagens orçamentárias
podem até não parecer tão graves quanto, por exemplo, um ato de corrupção. Mas
elas são, sim, gravíssimas: são um falseamento completo da situação fiscal
nacional, e por isso estão entre os casos que permitem o impeachment; elas
demonstram o descaso completo do governante para com a coisa pública.
Não faltou, é claro, a crítica ao presidente da Câmara,
Eduardo Cunha. Sim, é verdade que Cunha usou o pedido de impeachment como moeda
de troca para garantir sua própria sobrevivência. A própria Gazeta deixou bem claro que Cunha
desmoralizava o impeachment com sua atitude. Ele tem, sim, de sair – de
preferência, tendo seu mandato cassado. Mas, na mesma ocasião, lembramos também
que o impeachment é uma aspiração legítima e bem fundamentada. Há crime de
responsabilidade. Há razões mais que suficientes para que Dilma deixe a
Presidência. E nada disso é anulado pelo fato de ser Cunha a conduzir esse
processo na Câmara – até porque a decisão final não cabe a ele, mas aos 513
deputados e, depois, aos 81 senadores.
Se a retórica de Cardozo serviu para convencer algum
deputado, veremos quando o relatório de Jovair Arantes (PTB-GO) for a votação
na comissão. Mas é certo que os argumentos do advogado-geral não resistem a uma
análise mais profunda. Minimizar a importância das “pedaladas” é, no fim,
endossar a tese de que o governante pode dispor dos bens públicos como bem
entender. Aceitar esse raciocínio seria um retrocesso fatal para o país.
*Editorial publicado na Gazeta do Povo (PR) em 06/04/2016
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