sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Crônica

Deixo a todos com a sexta e última parte da crônica do jornalista e escritor Cesar Cabral. Quem leu as outras, sabe que se trata de um texto que merece ser lido. Quem ainda não leu, é só procurar nas edições anteriores do blog.

Um pouco do mesmo. Apenas bem diferente. (6)

Cesar Cabral*

Assunto encerrado; leite derramado chama o gato. A questão agora é saber um
pouco mais do nordeste tão apreciado para férias entre os sulistas e os sudestinos e imaginam que nessa parte do Brasil tudo é igual; comidas, sotaques, etc. Não é. 

Quem mora no litoral tem outra estrutura cultural, diversa da de quem mora no
sertão – que os sudestinos e os sulistas, na maioria, apenas têm conhecimento, eventualmente, pelo cinema ou pela literatura. Em 1824 A Confederação do
Equador, um movimento revolucionário de caráter separatista e republicano
Nordeste, reagiu contra a tendência absolutista e a política centralizadora de
D.Pedro I, contida na Carta Outorgada de l824, nossa primeira Constituição.
Porém, como penso que todos sabem o movimento revolucionário republicano
nordestino foi esmagado um ano depois. Como também foi dez anos depois do
início em 1835, a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul e parte de Santa
Catarina,  por D. Pedro pai. Motivos e causas à parte, muita gente ainda hoje quer separar o Brasil na conversa, nas escritas, nos editoriais de jornais e redes sociais.

Quem não conhece ou pelo menos já ouviu falar em Caetano Veloso, Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Caetano, Gil, Fafá de Belém, Tom Zé, Torquato Neto, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Fargner, Belchior, Ednardo, Reginaldo Rossi, Waldick Soriano, João do Vale, Zeca Baleiro, Alcione, Raul Seixas, Dorival Caymmi e família; a lista é grande. Não é preciso gostar – ou conhecer – todos, mas  eles existem, ou existiram.
E no humor de Tom Cavalcante, Renato Aragão e Chico Anysio além de mais da
metade dos alunos da antiga Escolinha do Professor Raimundo, todos nordestinos. Na música erudita, dos compositores Alberto Nepomuceno, Paurillo Barroso, do cearense Eleazar de Carvalho. Ritmos e melodias nordestinas inspiraram Heitor Villa-Lobos. Na Bachiana Brasileira nº 5, na segunda parte - Dança do Martelo –faz referência ao sertão do Cariri, uma região do sertão do Ceará com oito cidades, um milhão de habitantes, 3 Universidades, sendo uma delas Federal,12% da população adulta com curso superior completo,Museu Paleontológico com fósseis de animais que viveram na região há milhões de anos, metrô e aeroporto de porte com voos diretos ao Rio e por toda a região. Além do mais, terra do Padim Ciço Romão Batista.

Na literatura brasileira são nordestinos João Cabral de Neto, José de Alencar,
Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Gregório de Matos, Graciliano Ramos,
Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Jorge Amado, José Lins do Rego, Gilberto
Freyre, Ariano Suassuna que a pouco se foi, e Clarice Lispector, nascida na
Ucrânia declarava ser pernambucana.

E os jornalistas Ricardo Noblat, Geneton Moraes Neto, Xico Sá, Assis
Chateaubriand, Rachel Sheherazade, Audálio Dantas, Lêdo Ivo, Carlos Castelo
Branco, o Castelinho – os mais velhos sabem quem foi -, Joel Silveira, Ancelmo
Góis, Sebastião Nery, Gervásio Baptista – fotografo das revistas O Cruzeiro e
Manchete, o pai do fotojornalismo brasileiro.

E tem mais; muito mais além de políticos, filósofos, militares e de uma centena de profissões e atividades que saíram do nordeste e foram fazer um Brasil mais culto, mais civilizado, mais importante ao lado de brasileiros de outras regiões. Mas, brasileiros, não somos todos iguais e nossas diferenças são muito maiores do que em geral acredita a maioria. Tanto quanto um gaúcho de Horizontina, noroeste do Rio Grande do sul, terra de Gisele Bündchen, onde a maioria de seus habitantes fala dialeto alemão “Riograndenser Hunsrückisch”, não pode ser igualado a outro de Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, mais perto de Montevidéu do que de Porto Alegre. Também não iguala um mineiro de Belo Horizonte com outro de Uberlândia; esse culturalmente tem mais a ver com um goiano assim com um de Juiz de Fora é quase carioca. Mineiros do Vale do Jequitinhonha mais parecem com nordestinos do Raso da Catarina.

Em Salvador, que os sudestinos chamam de Bahia, tem baiana, tem caruru, tem
mungunzá, acarajé, berimbau, candomblé, Olodum, Carlinhos Braum (!) e Ivete
Sangalo. Tem saveiro, pescador, peixe e camarão. No sertão não tem. Tem é gente que nem sabe que isso existe. Come outra comida, não dança Axé nem frequenta candomblé. É cristão sertanejo como são todos os sertanejos dos oito Estados nordestinos. Um cristianismo que o sul e o sudeste jamais viu e quando ver não entenderá; sua liturgia,seus cânticos,suas práticas,sua linguagem.

Quando um sulista ou sudestino entrar na caatinga de areia vai sentir o calor seco e sufocante, os arranhões da Jurema e o que é sede. Talvez compreenda por que votam em quem lhes dá um “dinherim” pra compra farinha, café, açúcar, ”água de beber”e se sobrar um “pucadim”, uma alpercata pra um dos “mininim”. Vai entender que esse voto não é igual ao dos pobres sudestinos. Vai entender que esse voto vale mais; é o que lhes garante a vida, ainda que breve, pois é sua única proteção contra a morte. Para eles, o que importa se é esmola? 

Se é politicagem populista, eleitoreira, “indústria perpétua da seca”? Importa é que o “coroné mandou votá” e o Padim Ciço tá ajudando. É dessa obediência ao cabresto e dessa fé que vem o “dinherim”. Não é da Bolsa Família, mas é a Dilma que manda. O povo, eleitores de todas as classes socioeconômicas, não vota em propostas, em  projetos, em direita ou esquerda. Vota em nomes, em quem lhes assegura realizar seus desejos, suas necessidades, suas crenças, suas aspirações. Seja a Neca Setubal ou o Zezim do Bode. E ganha quem pode com meios que justifiquem os fins.

Nota: agradeço a colaboração, nas pesquisas necessárias, de Vulpino Argento, o
Demente, suplente de senador, condenado a 45 anos de prisão há poucos meses,mas já gozando as delícias de cumprir a pena em regime aberto.

*Jornalista e escritor

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