sábado, 26 de dezembro de 2020


 

 

Plano São Paulo, fase Miami 

Guilherme Fiuza

João Dória foi a Miami e voltou com a rapidez de um Zorro, o cavaleiro mascarado. Esses heróis de cara tapada são muito velozes. A reversão do Plano Miami só não foi mais rápida que a coletiva do Butantã para anunciar que não haveria coletiva.

Os dados da vacina chinesa previamente anunciados não existiam. Nesses casos é melhor mesmo cancelar a divulgação. Que fique claro: não ter o que divulgar não é problema nenhum para a equipe científica do Plano São Paulo. Todos são muito bem treinados no teatro amador e capazes de improvisar horas a fio sobre o nada. Mas nesse caso era melhor uma aparição curta, cirúrgica, apenas para recauchutar as expectativas e prometer que a novidade seria quente. Como se faz nas novelas – o próximo capítulo sempre será o melhor. Mesmo assim, a autoridade do Instituto aproveitou os holofotes para dizer que a sua vacina é a melhor de todas. 

Em se tratando de ciência, desinibição é tudo.

Foi assim que o Plano São Paulo avançou para a fase Miami – e recuou em menos de 24 horas. Essa é a beleza da ciência: o monitoramento rigoroso da fenomenologia faz com que tudo possa mudar em questão de segundos. No caso, foi de um sofisticado equipamento chamado desconfiômetro que veio o alarme para a correção de rumo. Dória não tem desconfiômetro – ninguém é perfeito – mas como as reações ao Plano Miami bateram no teto da Escala Richter, os androides que assessoram o governador importaram às pressas um desconfiômetro de Pequim e constataram o problema. 

Quando João Dória aborta uma missão porque está pegando mal é sinal de que o problema é grande. Como todo mundo sabe, o governador de São Paulo é imune ao constrangimento. Nenhum imunizante na história da medicina conseguiu tanta eficácia quanto esse bloqueador de vergonha. E não vá achando que Dória perdeu essa imunidade. Ela continua 100% eficaz – ou seja, o paciente permanece sem qualquer vestígio de culpa, remorso ou embaraço no sangue. Mas se os sensores do desconfiômetro chinês indicaram que estava pegando muito mal, era melhor seguir a ciência e mudar a maquiagem. 

O erro básico detectado estaria no fato de que o avanço do Plano São Paulo para a fase Miami não estava sendo bem compreendido. A população do estado brasileiro trancado pelo seu governador não entendeu por que ele se mandaria para um estado americano sem lockdown. O povo nunca entende nada. Mas a explicação é simples: Dória sabia que passar o Natal em liberdade era uma experiência arriscada, e se ofereceu sozinho como voluntário para a perigosa missão sob as palmeiras de Miami. É nessas horas que se reconhece um estadista. Na praia e sem máscara se reconhece qualquer um. 

Dória se arriscou por seu povo. Agora cabe ao seu povo se arriscar por ele, saindo do trancamento totalitário e hipócrita. Como não haverá jatinho para todos, a fase Miami terá de ser aplicada no Brasil mesmo. Praia, palmeira e coqueiro não vão faltar. Mas sejam solidários e não se esqueçam de retribuir o confinamento ao confinador.





O artigo segundo

Alexandre Garcia 

O Supremo está em recesso até fim de janeiro, período em que o presidente do tribunal faz plantão, revezando-se com o vice. Os ministros Rosa Weber e Luiz Fux recebem casos urgentes de habeas corpus e ações com liminares sobre questões que não podem esperar. 

Mas os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Alexandre Moraes avisaram que não vão tirar férias e vão continuar trabalhando. Creio que alguns para não se privarem do prazer de conceder habeas e outros para continuarem tendo a alegria de atender a partidos de oposição. 

O presidente Fux fez um apelo no discurso de posse, em 10 de setembro: “Conclamo os agentes políticos e os atores do sistema de justiça aqui presentes para darmos um basta na judicialização vulgar e epidêmica de temas em que a decisão política deva reinar.” E explicou que esse basta é fundamental para a democracia, a Constituição e a harmonia entre os poderes. Fux lamentou que questões que deveriam ser resolvidas no Parlamento têm exposto o Supremo a um “protagonismo deletério” - ou seja, danoso ao próprio tribunal. 

Clamou no deserto. Depois disso, o Supremo continuou sendo instrumento de pequenos partidos, usado para invadir competência do poder executivo - como já havia identificado antes de Fux o ministro Marco Aurélio. Baseados em que tudo é passível de manifestação do Judiciário, exigiu-se o óbvio - um programa de vacina - e até o absurdo - datas para começar e para terminar a vacinação. Ensino especial para pessoas especiais foi suspenso; foi cancelada isenção de alíquota de importação de armas curtas. 

Neste ano, o Supremo tirou do governo federal a administração da pandemia, trouxe de volta a exigência de publicação de balanços de sociedades anônimas nos jornais, ressuscitou o DPVAT, tirou a polícia dos morros do Rio, impediu aproveitamento sustentável de manguezais, entre outros. 

O artigo 84 da Constituição estabelece a competência privativa do Presidente da República para “prover e extinguir os cargos públicos federais”. Mas o Supremo impediu que o presidente nomeasse o diretor da Polícia Federal. Entre as muitas competências privativas do Presidente, está a de “exercer, com o auxílio de Ministros de Estado, a direção superior da administração federal.” Para isso, foi eleito com quase 58 milhões de votos. Mas a fala do Ministro Fux não teve resposta dentro e fora do Supremo. Ficou um triste silêncio diante do segundo artigo da Constituição, que manda haver independência e harmonia entre poderes.