Sumula do moralismo epidemiológico
Por
Guilherme Fiuza
Estamos no
ano de 2050 e uma junta de historiadores continua debruçada sobre o longínquo
(e estranho) ano de 2020. A cada semana um membro da equipe precisa ser
retirado e enviado a uma quarentena rigorosa para descontaminação espiritual,
de tão pesado que é o trabalho.
Mas a junta
é abnegada e está avançando no front da arqueologia cultural – já tendo
alcançado a certeza científica de que 2020 significou, na curva evolutiva da
humanidade, o pico de disseminação das falsas éticas. Deu-se ali praticamente uma
hecatombe moralista fundada na hipocrisia: “Barra pesada”, resumiu um dos
cientistas da junta, que pediu para não ser identificado.
O trabalho
corre em sigilo total, mas conseguimos o vazamento do rascunho de uma primeira
súmula sobre a falsa ética que explodiu em 2020 e publicamos a seguir, com
exclusividade:
1 - “Os
próximos 15 dias serão decisivos no enfrentamento ao coronavírus”. Este alerta
enigmático foi captado em discursos de governadores brasileiros tanto em abril,
quanto em julho de 2020 – levando os pesquisadores de 2050 à hipótese bastante
provável de que no ano em estudo o tempo era contado de outra forma, num
sistema em que cada dia podia levar três meses ou mais, dependendo da região do
país e do partido do governador.
2 - “Se
puder, fique em casa”. Essa foi a frase que mais intrigou os historiadores.
Como aparentemente era uma recomendação para barrar uma epidemia, eles não
conseguem entender o que acontecia na versão “se não puder”. Isto porque há
pouquíssimos registros de slogans ou palavras de ordem para quem saía de casa –
e há vários registros de aglomerações em transportes sem nenhuma ação
disciplinadora do Estado, que por outro lado algemava e batia em mulher sozinha
na praça ou na praia. Era tudo muito estranho nessa época.
3 - “Use
máscara em casa”. Por incrível que possa parecer, havia seres humanos em 2020
que se sentiam (e se diziam) éticos ao tentar empurrar o Estado para patrulhar
o interior de residências em busca de quem não estivesse usando máscara –
fingindo que assim bloqueariam o contágio do coronavírus e salvariam vidas.
(OBS: Eles diziam amar a democracia). E também queriam que alguém fechado
sozinho no seu próprio carro sem máscara fosse considerado genocida em
potencial. Os historiadores estão tipificando esse fenômeno antropológico como
“Complexo de Zorro”.
4 - “Dane-se
a economia”. Com uma habilidade retórica impressionante, os fundamentalistas da
Seita da Terra Parada – corrente mística dominante em 2020 – faziam milhões de
pessoas acreditarem que os que não seguissem sua cartilha eram criaturas
desumanas e só pensavam em dinheiro. Hoje sabemos que morreu mais gente de
asfixia social do que de coronavírus, mas na época a ordem unida para parar o
mundo como seguro de vida era praticamente inquestionável. Alguns historiadores
estão comparando esse tabu com o da Terra como centro do universo, que também
deu muita briga e demorou a cair.
5 - Conclusão
preliminar da junta de historiadores: o ano de 2020 foi o Pico dos Hipócritas.
Uma elite intelectual que se apresentava como libertária levou ao extremo seu
expediente malandro de viver patrulhando os outros para proteger a si mesma –
numa espécie de jardim das delícias burguesas, também conhecido na época como
“curralzinho vip”. Com a epidemia, eles foram tão longe no lockdown mental que,
em dado momento, só não era expulso do clube quem inserisse em todas as suas
mensagens a ideia de prisão. Os historiadores de 2050 estão convictos de que
2020 foi o ano mais reacionário da história – e que dificilmente um fenômeno
similar voltará a atingir a humanidade de forma tão obscura.