O STF, a mente criminosa e
nós, essa gente ordinária
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Francisco Escorsim |
Até que demorou para o tal
STF começar a devolver o país à normalidade do seu Estado Corrompido de
Direito, não acha, leitor ordinário? Mas agora parece que vai. Era tolice mesmo
imaginar que gente tão extraordinária quanto sua excelência, o ministro Gilmar
Mendes, indicado para o cargo por critério político, assim como todos os demais
membros da côrte, deixaria que outros tão extraordinários quanto fossem
processados e julgados como pessoas ordinárias. Jamais! Por isso entendo
perfeitamente sua indignação contra quem os fez passar por uma situação extrema
como essa, serem tratados como pessoas comuns. No seu lugar eu também me
indignaria histericamente: “Que Gente Ordinária!”
Está agastado, leitor
ordinariamente desiludido? Permita-me uma sugestão para suportar melhor essa
brasistrite nervosa aí. Desconecte um pouco do noticiário e das redes sociais e
assista ao seriado Mindhunter, da Netflix, baseado no livro Mind Hunter: Inside
the FBI’s Elite Serial Crime Unit escrito por John E. Douglas e Mark Olshaker,
que conta a história de como o FBI, a polícia federal americana, nos anos 1970
começou a usar da psicologia para compreender e mapear o comportamento de
assassinos em série, donde surgiu o termo serial killer. Na primeira temporada
os agentes apenas entrevistaram assassinos condenados, mas na segunda passaram
a atuar em casos em andamento, aplicando o conhecimento que haviam aprendido
com aquela gente extraordinária.
Até que demorou para o tal
STF começar a devolver o país à normalidade do seu Estado Corrompido de Direito
O interessante na série,
no meu entender, não é a psicologia dos serial killers, que ao ser mapeada vai
revelando uma mesmice que beira ao tédio. Há quase sempre um componente de
desordem sexual e uma vaidade colossal que os leva a quererem ser reconhecidos,
nomeados e imitados. Em outras palavras, querem se tornar uma ideia. Uma ideia
besta, porém muito perigosa, não apenas para suas vítimas, mas para quem lhes
dá atenção por muito tempo, como os agentes do seriado, pois como bem disse Nietzsche:
“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um
monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”
Nenhum dos policiais
escapa de serem entortados pela proximidade com aqueles psicopatas. Um deles
torna-se obsessivo por tentar compreendê-los, desvendar os crimes, puni-los,
“entrando” na mente dos assassinos e pagando um preço alto por isso,
desenvolvendo ataques de pânico, perdendo todo traquejo social e de certa forma
se isolando. O outro, mais consciente da absoluta necessidade de separar o
dever do ser, até que tenta manter a distância prudente do trabalho, mas acaba
sendo engolido, não conseguindo evitar o naufrágio do seu casamento. Em outros
seriados e filmes com a mesma temática, como Criminal Minds, True Detective,
Seven, a consequência para os policiais também é muito semelhante.
Mas o que os derruba, na
verdade, é menos a monstruosidade dos assassinos do que a frustração por
saberem quem eles são e, mesmo deixando isso evidente para todo mundo, verem
todo seu esforço com frequência dar em nada ou muito pouco, pois o sistema
político-jurídico costuma servir mais como garantia de proteção aos criminosos
do que às suas vítimas. A segunda temporada de MindHunter, por exemplo, é
baseada num caso real de um psicopata que matou ao menos 27 crianças. Os
policiais o descobriram, prenderam e ele foi condenado, mas apenas por outros
crimes. Até hoje, ninguém foi punido pelas mortes dessas crianças, embora todo
mundo saiba perfeitamente bem quem foi o assassino, não só pelo trabalho
policial feito à época que levou à sua prisão, mas também porque assim que foi
retirado do convívio social não aconteceram novas mortes de crianças.
Mas trabalho policial é
uma coisa, o judiciário, outra. Quem costuma acompanhá-los ou mesmo ler
romances ou assistir filmes policiais e thrillers jurídicos sabe do que falo.
Nas histórias policiais, descobrir a verdade é o que importa. De histórias
assim, talvez a mais impactante para mim tenha sido a do romance policial de
Durenmatt, A Promessa, que virou filme nas mãos de Sean Penn, como diretor, e
Jack Nicholson, como o policial prestes a se aposentar e que antes disso tenta
desvendar o assassinato de uma garota, prometendo à sua mãe que pegaria o
assassino. Ele passa sua aposentadoria investigando por conta, acaba
descobrindo quem é o sujeito e sabe como prendê-lo, mas por um azar do acaso
não consegue, passando o resto de sua vida obcecado e frustrado com isso.
Já nas histórias jurídicas
o que interessa é o que se consegue provar dessa verdade trazida pela
investigação policial. Por isso, é comum que os “operadores do Direito” se
descolem dos fatos e das próprias provas, passando a viver na sobre-realidade
do processo, não raro acabando por inverter a realidade e transformando o
julgamento num ato teatral ridículo. O recente julgamento do STF anulando a
condenação do ex-presidente da Petrobrás é emblemático disso, aliás. Ignorando
por completo a realidade dos fatos, também a realidade do próprio processo
legal, destacaram um aspecto qualquer, sem sequer demonstrarem que prejuízo
teria havido aos réus, para inventar outro caminho processual e anular tudo.
É claro que nada disso
anula a realidade revelada e provada pela operação Lava Jato, mas certamente
anula ainda mais a ínfima credibilidade que o STF possuía aos olhos da
população que vive na realidade dos fatos, não na dos corredores de tribunais
em que alguns advogados são admitidos de bermuda, mas o homem ordinário seria
barrado se assim aparecesse por lá. Aconteça o que acontecer, a Lava Jato como
um todo já se tornou quixotesca. Mas quixotesca ao avesso. Dom Quixote combatia
moinhos de vento crente serem dragões. Vivesse no Brasil e os dragões seriam
perfeitamente reais, mas os STF da vida fariam de tudo para defendê-los e
preservá-los tentando obrigar todos a enxergarem-nos apenas como moinhos de
vento.
O grande crítico
literário, Otto Maria Carpeaux, aliás, considerava o gênero dos romances
policiais como um desenvolvimento temporal dos romances de cavalaria, como o
Amadis de Gaula, que se tornou mais conhecido depois de Cervantes colocá-lo
como a grande influência de Dom Quixote, que melhor nos serve aqui para
compreender nossa realidade, pois era um cavaleiro nobre numa época sem
nobreza, sem ideais, parecendo mais o bobo da corte do que o seu grande herói.
É assim que todos nós que nos recusamos a tapar a realidade criminosa revelada
pela Lava Jato com a peneira idealizada das chicanas jurídicas do STF estamos
sendo tratados por essa gente extraordinária que tem o poder da caneta, mas não
o da verdade.
Francisco Escorsim