Quase um ano depois da
edição de um indulto natalino que foi um insulto à sociedade, o Supremo
Tribunal Federal formou maioria pela legalidade do texto publicado pelo
presidente Michel Temer no fim de 2017. Indultos natalinos, em que vários
criminosos têm sua pena extinta e podem recuperar a liberdade, já viraram uma
tradição – que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, promete reverter –, mas
Temer inovou de uma maneira especialmente acintosa. Na comparação com indultos
anteriores, o de 2017 reduziu o tempo de cumprimento da pena exigido para
conseguir o perdão (de um quarto para um quinto, para os não reincidentes
condenados por crimes não violentos), além de passar a prever a possibilidade
de indulto até mesmo para quem cometeu crimes violentos e de permitir o
cancelamento de multas aplicadas como punição por certos crimes. Este
verdadeiro presente para vários condenados na Operação Lava Jato levou a
Procuradoria-Geral da República, ainda no fim de 2017, a pedir a suspensão do
decreto, o que a então presidente do STF, Cármen Lúcia, fez prontamente.
O que estava em jogo no julgamento
era a extensão do poder presidencial. O artigo 84, XII da Constituição afirma
apenas que “compete privativamente ao presidente da República (...) conceder
indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos
em lei”, sem maiores detalhes. Esse foi o centro do embate entre Luís Roberto
Barroso, relator da ação, e Alexandre de Moraes, que abriu a divergência.
Barroso chegou a editar uma nova versão do indulto, em março deste ano,
retirando várias das partes mais problemáticas e defendeu sua posição. Moraes,
no entanto, argumentou que, na ausência de regras mais específicas para o
indulto previstas em lei, o presidente pode agir como bem entender, ainda que
se discorde dos seus critérios, e o Judiciário não teria como interferir. Essa
foi a tese aceita por Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello,
Gilmar Mendes e Celso de Mello, enquanto Edson Fachin votou com o relator.
O pedido de vista de Luiz Fux impediu o término do julgamento.
Parece-nos evidente que o
constituinte não teve a intenção de atribuir poderes ilimitados ao presidente
da República no caso do indulto – muito menos o poder de promover, por decreto,
a impunidade, em violação flagrante do princípio da moralidade, estabelecido no
artigo 37 da Constituição. Barroso foi especialmente duro na crítica ao indulto
por crimes de corrupção: “O fato de um corrupto não ver nos olhos a vítima que
ele produz não o torna menos perigoso. A crença de que a corrupção não é um
crime grave e violento e de que os corruptos não são perigosos nos trouxe até
aqui a esse quadro sombrio”, afirmou em seu voto. Por mais que o Supremo tenha
tornado o ativismo judicial uma prática corriqueira, neste caso específico é
difícil dizer que o Judiciário está inovando ou se atribuindo prerrogativas que
não tem; trata-se de restaurar, no trato da coisa pública, a moralidade
defendida pela Carta Magna.
Mas o debate não
permaneceu apenas na questão exclusivamente constitucional; em seus votos, os
ministros fizeram todo tipo de consideração em defesa de uma política penal
mais leniente. Não faltaram, por exemplo, as menções ao tamanho da população
carcerária do país, uma das maiores do mundo, para se repetir a ideia de que
“no Brasil se prende demais” – uma afirmação que chega a ser um acinte no país
onde menos de 10% dos 60 mil homicídios anuais são solucionados. Um raciocínio
derivado deste foi exposto por Alexandre de Moaraes: dos 720 mil presos,
lembrou, “um terço são presos sem violência ou grave ameaça”. Ainda que o
número esteja correto, ele ignora que diversos crimes considerados não
violentos são, sim, graves o suficiente para justificar que seu autor seja
isolado do convívio social (pensemos, por exemplo, no tráfico de drogas, pelo
qual várias famílias são destruídas), sem falar naqueles que, em si, não
envolvem violência, mas se alimentam de ações prévias violentas. De qualquer
modo, a decisão sobre que crimes devem ser punidos com a prisão e que crimes
pedem penas alternativas cabe à sociedade, por meio de seus representantes
eleitos no Poder Legislativo.
Ricardo Lewandowski chegou
ao ponto de citar o indulto como uma ferramenta de ajuste fiscal, ao dizer que
cada preso custa R$ 3 mil por mês ao Estado. Incrível que ele tenha tido a
coragem de trazer esse aspecto à baila logo depois de o Supremo ter colocado a
faca no pescoço dos brasileiros, exigindo um aumento salarial para abrir mão de
um privilégio inconstitucional, o auxílio-moradia, momento em que o ajuste
fiscal em nada importava. Isso sem falar que, obviamente, um criminoso solto
tem um custo muito maior à sociedade que um criminoso preso.
Formalmente, o julgamento
não está encerrado, devido ao pedido de vista de Luiz Fux. Isso levou o
presidente da corte, Dias Toffoli, a colocar em votação a revogação da medida
cautelar que mudava as regras do indulto – uma inovação perigosíssima, por se
antecipar ao desfecho do julgamento. O caos só não foi maior, até o momento,
porque também essa votação foi paralisada por um pedido de vista, do próprio
Toffoli. No entanto, a essa altura já parece certa a consagração da tese que
permite ao presidente conceder o indulto como achar melhor. E, se o indulto de
2017 foi restaurado em sua totalidade, Temer terá ainda mais respaldo para
editar um perdão semelhante em 2018. Perde o combate à corrupção, perdem todos
os brasileiros honestos, vendo que o crime pode, sim, compensa.
Gazeta do Povo