Marko
Petek, quem
acompanha o meu blog já sabe, é um gaúcho que mora em Genebra, na Suíça, trabalha
no Cern (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear) o maior laboratório de física de
partículas do mundo, e é,
digamos assim, um colaborador internacional do machadofilho.com
Mesmo atuando em outra área do
Centro, ele viveu o dia em que o mundo ficou sabendo sobre a provável descoberta
da Partícula de Deus. Aqui, o Petek nos conta um pouco sobre a vida no Cern e
os momentos que antecederam o anúncio daquilo que, para ele, muito antes de ser
um final, pode ser um começo. Poucos veículos de comunicação e, provavelmente pouquíssimos
blogs podem apresentar, como eu, um artigo escrito por alguém que vive,
intimamente, o espaço que hoje foi notícia no mundo inteiro. Ler o artigo do
Marko Petek é conviver com algo quase que inacessível para a maioria das
pessoas. Vamos lá, vamos viver os bastidores do anúncio da descoberta da Partícula
de Deus.
Bóson de Higgs, os bastidores
Marko Petek
Muito foi escrito sobre o anúncio da “provável” descoberta do tão
falado Bóson de Higgs pelo Cern, em Genebra.
Como trabalho no laboratório faz quatro anos, achei que podia dar
a minha visão pessoal dos eventos. Sem entrar em detalhes técnicos, que estão
amplamente disponíveis em jornais, televisões e principalmente na Internet. Mas
contando um pouco do dia-a-dia e do período que antecede estas divulgações mais
“fantásticas” no Cern.
Em primeiro lugar é preciso dizer que o ambiente do Cern, em nada
lembra a imagem que as pessoas eventualmente tem, de um lugar ascético, com
cientistas trabalhando de avental branco em ambientes altamente controlados.
É verdade que até existem uns poucos (pouquíssimos) lugares
assim. Mas de maneira geral o ambiente é um misto de universidade com
indústria. Universidade porque o informalismo é total. Hoje mesmo fui trabalhar
de bermuda, em função do calor. No caminho precisei regular os freios da minha
bicicleta (meio de transporte largamente usado pelo pessoal do Cern) e em
função disto passei a tarde com uma mancha de graxa no meio da camiseta. Em
dias realmente quentes (acreditem, eles existem sim na Suíça, pelo menos uns 3
por ano) eu chego a ir trabalhar de chinelo de dedo, coisa que nunca tive
coragem de fazer no Brasil. Mas como na Europa ninguém liga para o que o outro
está fazendo ou usando, posso ter este tipo de liberdade.
Indústria porque é uma área muito grande. Na realidade são duas
grandes áreas (campi) e mais algumas dezenas de pequenos prédios espalhados
pelo território, com a função de controlarem o que se passa no túnel situado
100 metros abaixo da superfície. Pois bem, nestas grandes áreas existem mais de
100 prédios (e desde que cheguei vários novos foram construídos) e algumas destas
estruturas lembram muito pavilhões industriais.
Tipicamente os prédios são compostos por longos corredores com
salas (offices) ao longo dos mesmos, com o tradicional informalismo que
corredores de estudo carregam em qualquer parte do mundo. Pôsteres que vão de
adestramento de animais a congressos técnicos preenchem paredes e corredores.
Um lugar até mesmo acolhedor, com bastante madeira e aquela
aparência de “usado” e não algo frio, novo e informal. Grande parte da
atividade se passa nos cafés e corredores, tradicionais pontos de encontro para
europeus. Não querendo sobrevaloriza-los, mas com certeza muita informação
importante já adquiri nestes cafés.
Mas voltando ao assunto principal. Como eu trabalho na parte de
informática, não participo das reuniões onde o assunto é física. Com isto eu (bem
como outros colegas) não estou sempre atualizado sobre o andamento das
pesquisas. Tenho ideias gerais, lógico. Sobre o funcionamento da aparelhagem,
computadores e outros. Mas aquela atualização semanal vinda das reuniões de
grupos (meetings) acaba ficando um pouco de lado. Isto que trabalho em uma sala
com 3 colegas, todos eles físicos.
Volta e meio indago sobre o estado geral das pesquisas. E volta e
meia nosso DG (Diretor Geral) envia emails sobre o mesmo assunto.
Não sei ao certo por qual meio descobri, a menos de 30 dias, que poderíamos
ter novidades em breve. Sei que, como de praxe, quando o assunto esquenta o DG
envia emails advertindo a todos para que não se precipitem, pois ainda
carecemos de maiores informações, cruzamentos, pesquisas, etc, etc.
Uma coisa que realmente chama a atenção é como as pessoas guardam
segredo. Claro que existem os inevitáveis vazamentos, mas a disciplina do
pessoal é impressionante.
Ainda mais porque precisamos guardar segredo inclusive
internamente. Na busca do Bóson de Higgs estão envolvidos dois grupos
diferentes, cada um com projetos bilionários (literalmente) e milhares de
pesquisadores. O DG de alguma forma colocou “ordem na casa” algum tempo atrás,
exigindo a divulgação de resultados em conjunto pelos dois grupos para
receberem o aval oficial do Cern. Mesmo assim existe a disputa. Fraterna,
desconfiada, arisca por vezes.
Situações interessantes existem, como casais de pesquisadores em
que cada um deles pertence a um experimento distinto.
Eu, de minha parte, procuro manter uma curiosidade cautelosa. A
única maneira de saber o que está acontecendo é perguntar para um amigo
envolvido. Mas não quero constranger estes amigos a revelarem o que não devem
mesmo sendo eu um membro pleno do grupo com todos os direitos a informação.
Então pergunto em pílulas e me conformo com a informação recebida, sem querer
“futricar” mais e mais.
Foi assim que uns 10 dias atrás fiquei sabendo que os resultados
já apontavam para a “observação” (não devemos usar a palavra “descoberta”
ainda) de alguma coisa com características que, caso ele existisse, o bóson de
Higgs deveria apresentar. Naquela altura a certeza era acima de 80%, mas
restavam ainda alguns dias de trabalho pela frente. O Cern não iria chancelar
nada sem os dois grupos citados acima (CMS e Atlas) chegarem a resultados
semelhantes e com um percentual de certeza superior a 99%.
Acontece que as máquinas estavam desligadas, para manutenção.
Então não haveriam novos dados, era preciso trabalhar com os dados já
disponíveis.
E foi isto que o pessoal fez, incessantemente, nos últimos dias.
Processaram, processaram e processaram dados. Noites a dentro. Eu, desde a
consulta anterior, abstive-me de querer saber mais. Fiquei só catando
informações que escutava aqui e ali. Estas informações indicavam que a certeza
havia crescido muito, mas ainda não alcançara o patamar desejado.
Até que dois dias atrás ví uma foto de dois colegas junto ao
próprio Dr. Higgs em um restaurante do Cern. Ele já está em idade avançada.
Obviamente ninguém iria trazê-lo até aqui sem uma razão muito forte. E a
própria movimentação da imprensa (convidada pelo Cern) indicava a existência de
fumaça. E como se sabe, onde há fumaça ...
Hoje foi o dia. O anúncio oficial seria feito no auditório
principal, que tem uns 500 lugares. Ontem chegou email dizendo que o auditório
seria esvaziado, trancado durante a noite e aberto hoje as 7:30 da manhã. O
evento iria começar as 09hs.
Nem me dei ao trabalho de tentar acessar. As informações que
recebi posteriormente é que as 3:30 da manhã já tinha gente na fila. Até parece
postão de saúde no Brasil.
Um amigo chegou antes das 07hs e pelo tamanho da fila viu que não
havia esperança alguma. Acordou cedo à toa.
Além disto nestes dias a segurança interna é muito reforçada e
todo deslocamento fica mais complicado.
Como eu já imaginava o que aconteceria fiquei em casa e, logo ao
acordar, conectei meu computador ao sistema de video-conferência
disponibilizado pelo Cern para seus membros acompanharem o evento a distância.
Afinal, são mais de 3000 pessoas espalhadas em todo o mundo.
Ao ver filmagens da sala, me surpreendi com a quantidade de
gurizada. Fato que foi posteriormente confirmado por pessoas lá presentes.
Acontece que estamos no verão aqui na Europa e, em julho e agosto, o Cern
recebe centenas de estudantes que vem aqui estagiar (Summer Students).
Estes estudantes ficam hospedados em sua maioria dentro do
próprio Cern. Foi portanto bem fácil para eles acordarem de madrugada e
ocuparem os lugares disponíveis. De maneira que a maioria de nós, sempre
presentes, acompanhou mesmo foi pela internet.
O evento confirmou as suspeitas. Quando cheguei ao Cern lógico
que o assunto não poderia ser outro. Inclusive com opiniões diversas sobre se o
fato deveria ter sido mesmo divulgado como uma “observação” ou já como uma
“descoberta”. Afinal, de acordo com o ditado: “se algo tem cara de gato, cor de
gato, cheiro de gato e mia como um gato, provavelmente é um gato”.
Ainda vamos ouvir muito disto, mas a verdade é que pela tarde já
estava tudo na sua rotina normal novamente. Há muito ainda a ser feito e o que
aconteceu hoje, antes de um final foi apenas um início.