O dever de casa é na rua
Por Guilherme Fiuza
O índice de confiança do
consumidor subiu em junho (FGV), assim como o índice de confiança da indústria
(CNI) – 29 de 30 setores melhoraram suas expectativas. Apesar de ainda haver
quem diga que o pior da epidemia está por vir (a longa espera pelo pico), a
sociedade brasileira parece pronta para iniciar uma das recuperações mais
difíceis da sua história.
Além do obstáculo
sanitário, há o imenso desafio do obstáculo cultural. Junto com a gravidade da
pandemia, sobreveio uma deformação, também grave, do senso comum. Ficou difícil
buscar a dimensão exata do problema sem ser acusado de tentar minimizá-lo. E a
pior consequência disso é a confusão de princípios sobre o que fazer e como
agir – isto é, como adaptar a vida em sociedade à convivência com o risco. A própria
Organização Mundial da Saúde não conseguiu firmar diretrizes claras sobre isso.
A recomendação do “fique
em casa” se mostrou mais um slogan que uma diretriz. A OMS logo admitiu que,
para populações socialmente vulneráveis, o confinamento total não seria
salvação – seria morte. E recomendou que aqueles dependentes da circulação
diária para cavar sua sobrevivência continuassem saindo de casa. Com todas as
suas falhas na pandemia do coronavírus, a OMS jamais emitiria uma recomendação
como essa se circulação social fosse sinônimo de devastação sanitária.
O mais importante é que
nessa mistura geral de incerteza e medo ficou difícil de planejar – e, mais
ainda, de propor – um protocolo rigoroso de isolamento de vulneráveis e
circulação controlada de não-vulneráveis. Mas é esse o dever de casa (e de rua)
que o mundo terá que fazer agora, sejam quais forem os credos.
A Justiça brasileira tem
cassado medidas municipais de reabertura do comércio e outras atividades
sociais. Mesmo se o município apresenta capacidade satisfatória de atendimento
hospitalar em relação ao número de infectados, juízes têm embargado a retomada
dessas atividades baseados em premissas sem qualquer comprovação científica –
como os modelos do estado de São Paulo, que têm como parâmetro de segurança o
confinamento total (sem observar os dados de contágio doméstico ou de
isolamento dos confinados em relação aos que circulam, vulneráveis ou não).
Não faz o menor sentido
proibir uma loja de funcionar, com todos os padrões de distanciamento e
higienização atendidos, enquanto diante dela passa um ônibus lotado. A cena de
transportes públicos com aglomerações se repetiu fartamente em várias capitais,
frequentemente sem interferência de agentes públicos. A impressão é de que se
abriu mão da responsabilidade de organizar o distanciamento e demais medidas de
bloqueio de contágio para afirmar pura e estupidamente o lockdown. Isso não tem
nada a ver com enfrentamento de epidemia e salvação de vidas.
Após meses de pandemia,
não há nenhuma demonstração científica, em lugar algum do mundo, de que
empurrar populações inteiras para dentro de casa seja mais eficaz do que um
isolamento rigoroso dos vulneráveis. As estatísticas de vários países vêm
mostrando que, em geral, mais de 90% dos óbitos por covid-19 estão nos grupos
de risco – sendo que a imensa maioria tem predisposição cardíaca e está acima
dos 70 anos.
Juízes e governantes não
podem mais fechar os olhos para isso – se não quiserem começar a matar
sociedades inteiras.