Politicagem virou ciência
Por Guilherme Fiuza
Se você acha que os
elogios comovidos de Fernando Haddad a Henrique Mandetta têm alguma coisa a ver
com enfrentamento de epidemia, você está aprovado como figurante no show de
simulação e confinamento. Você com certeza também viu no súbito enlace de João
Dória com Lula uma conjunção de forças democráticas pelo bem da saúde pública.
Governador, ex-ministro, ex-presidiário e ex-suplente de presidiário certamente
estão juntos nesse enredo para ajudar você.
Todos sabem que o mais
importante numa emergência sanitária é ter autoridades falando sobre a tragédia
24 horas por dia, de forma que o público não se distraia com besteira. Foi
assim que o país assistiu durante pelo menos um mês ao ex-ministro Mandetta
falando um pouco de tudo – das informações gerais sobre o combate ao
coronavírus a reflexões, projeções, correção de projeções, expectativas,
desabafos, teorizações sobre o enclave entre o SUS e a democracia, digressões
sobre a importância do diálogo com os traficantes de drogas e exaltações à
ciência.
Nessa parte da elegia
científica faltou só um detalhe que, por coincidência, foi abordado pelo seu
substituto, Nelson Teich, logo na primeira entrevista: a paralisação da
sociedade armou uma bomba mortífera na saúde da população.
O novo ministro não usou
essas palavras e evitou o tom de alarme, mas foi muito claro ao reportar uma
perspectiva que era óbvia, e mesmo assim tinha sumido das preocupações
oficiais: a suspensão de exames, tratamentos e diagnósticos de todos os males
que não fossem coronavírus vai fazer explodir no curto prazo um quadro geral de
doenças agravadas em estágio avançado. Para muita gente será tarde demais.
Exames, tratamentos e diagnósticos são recursos científicos. A história vai
dizer se a ciência foi atropelada pela retórica.
A devoção científica
também estava nos elogios dirigidos ao ex-ministro pelo professor Haddad –
membro da quadrilha que revolucionou a ciência da corrupção – e na troca de
afagos entre o governador Dória e Lula, PhD em subtração. Todos unidos pelo
teorema da paralisia geral, com propósitos que, considerando seus currículos e
prontuários, só podem ser humanitários.
Se considerarmos, com
certa boa vontade, que ficção científica também não deixa de ser ciência, Dória
deu sua contribuição com as equações ornamentais do lockdown de São Paulo. Um
homem à frente do seu tempo (2022), o governador esteve entre as primeiras
autoridades a anunciar o fechamento geral. Depois recuou um pouco – sobre
fábricas, por exemplo – para não parecer que desejava paralisar por paralisar.
Mas não deixou de ameaçar na primeira hora os agentes econômicos, constrangendo-os
com a advertência de que não era hora de empresário pensar em lucro. Depois
ameaçou prender na rua o cidadão que desrespeitasse a quarentena.
Nenhum cientista no mundo
ousou estabelecer um modelo matemático relacionando de forma exata percentual
de confinamento, progressão da epidemia entre vulneráveis e consequente
expansão de demanda por leitos de UTI. Mas as autoridades de São Paulo dizem
que têm esse modelo – e que se a quarentena não chegasse aos níveis
determinados por elas o sistema hospitalar iria colapsar em exatos 15 dias.
Ciência é tudo – e chute é para os fortes.
Há países com isolamento
total – a maioria – e há outros com isolamento parcial, focado nos grupos de
risco e nas atividades que provocam aglomeração. No balanço entre resultados
melhores e piores contra a epidemia nenhuma fórmula de combate está consagrada
– é tudo hipótese e tentativa. Mas em alguns lugares o fechamento geral virou
dogma.
Se não é ciência e não é religião,
só pode ser política.