A Seita da Terra Parada
Por Guilherme Fiuza
Você está em casa
assistindo o governador de São Paulo assumir a paternidade da cloroquina, o
ministro da Saúde explicar que traficante também é gente, jornais estrangeiros
publicarem foto de covas abertas para dizer que o Brasil não tem mais onde
enterrar os seus mortos, entre outras referências intrigantes e estridentes ao
mesmo assunto. Se você está paralisado e catatônico é porque já sabe que se
trata de um show mórbido, mas está esperando que alguém te diga isso.
Então vamos lá: isto é um
show mórbido. Levanta daí.
Onde estão os mapas
demonstrando os resultados diretos do isolamento total na contenção da epidemia
ou na suavização dos picos? Aqui vai uma notícia real no intervalo da novela:
eles não existem. Repetindo: os mapas comprovando o efeito mitigador do
confinamento geral sobre o número de infectados, de internados e de mortos não
existem. Nova York se trancou em casa e a curva da epidemia seguiu quase como
uma reta para cima – dias, semanas, e o gráfico inabalável, mais para subida de
foguete que de avião. O que se passa?
Em vez de mapas ou modelos
comprováveis, o que você vai ouvir é que sem quarentena seria pior. E fim de
papo. Os filósofos do lockdown são invencíveis. E falam pouco. É melhor não
insistir, porque senão eles gritam com você, seu irresponsável, alienado,
assassino.
Aí vem a própria OMS
declarar que a nova frente de contágio está se dando dentro de casa – e que as
autoridades de saúde têm agora a tarefa de identificar os infectados no
interior dos seus lares. Assim eles poderão ser isolados dos seus familiares e
finalmente oferecer ao mundo a tão esperada suavização do surto. Notou como
está tudo absolutamente sob controle? Eles só não demonstram suas premissas e
estratégias de forma científica porque não querem cansar a sua beleza. Eles têm
certeza de que você prefere ouvir um bom discurso e ir dormir tranquilo sabendo
que está tudo bem.
Tem sempre uma meia-dúzia
de chatos que não gostam de discurso e já notaram que os efeitos do
confinamento total sobre a evolução da epidemia não estão sendo demonstrados
numericamente – ou seja, permanecem como uma hipótese. Fica em casa porque tem
um vírus lá fora, e ponto final. Talvez pensando nisso, o governo de São Paulo
resolveu inovar e ofereceu à população um modelo matemático pioneiro, montando
no fundo do quintal de algum boteco fechado. João Dória disse que se a
quarentena não atingisse 75% da população – observe a precisão – em 15 dias a
rede hospitalar não terá mais leitos para atender os infectados. Ou seja:
iminência de colapso.
Um dia depois o alerta
reapareceu com o dado de 70% – sempre “segundo especialistas”. Deve ser um
modelo móvel. E, com certeza, revolucionário, porque nem a OMS, nem cientista
nenhum no mundo montou uma fórmula partindo do percentual de confinamento (São Paulo
deve ter importado um medidor da China) e estabelecendo sua correlação com a
progressão exata da epidemia, o número de vulneráveis infectados e a
consequente expansão da demanda por leitos – num cronograma tão preciso que
possa ser aferido semanalmente. Vem prêmio Nobel aí.
Junto ao modelo matemático
inovador, o governador de São Paulo fez o que vários outros governadores e
prefeitos do país estão fazendo: ameaçou prender o cidadão na rua. E essa ética
da boçalidade já está em prática em vários pontos do território nacional, com
cenas edificantes e civilizatórias de policiais capturando passantes, inclusive
mulheres, várias delas tratadas de forma animalesca à luz do dia – sob o
silêncio protetor dos humanistas, que estão calados em casa assistindo à novela
do vírus.
Ou seja: não está sendo
gestada apenas uma ruína proverbial com tudo trancado e a vida adiada
indefinidamente. A população também está entregando a sua liberdade de bandeja
a tiranetes com propósitos inconfessáveis de poder. O mesmo Dória está usando
operadoras de telefonia para vigiar os passos dos seus reféns.
Eles dizem que estão
salvando vidas. E vocês, por alguma razão insondável, acreditam.