Sergio Moro, o STF e o
golpe mortal na Lava Jato
Em entrevista ao jornal
argentino Clarín, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes
voltou à carga contra o ministro da Justiça, Sergio Moro, e prometeu se
esforçar para colocar em julgamento no Supremo ainda neste ano um habeas corpus
que pode anular a sentença do ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá.
Em julho de 2017, Moro condenou Lula a 9 anos e 6 meses de prisão por corrupção
e lavagem de dinheiro, mas a defesa do ex-presidente recorreu ao STF no fim de
2018, alegando parcialidade da parte do então juiz federal e elencando, entre
os motivos, o fato de Moro ter aceito o convite de Jair Bolsonaro para ser seu
ministro da Justiça.
Ainda no fim de 2018, o
julgamento começou na Segunda Turma da corte, com Edson Fachin e Cármen Lúcia
recusando o habeas corpus. Mendes pediu vista e devolveu o processo em julho
deste ano, assim que o site The Intercept Brasil começou a divulgar o que alega
ser o conteúdo de conversas entre Moro e integrantes da força-tarefa da Lava
Jato. Mas, em uma manobra na qual se comportou mais como advogado de defesa de
Lula que como juiz, Mendes tentou tirar da cartola a soltura de Lula sem julgar
o mérito do habeas corpus, um truque que nem mesmo Celso de Mello, conhecido
por sua postura mais garantista, endossou.
Os atos processuais invocados pela defesa
de Lula como
evidência da “parcialidade”
de Moro se deram todos de acordo com a lei
Não é nosso objetivo, no
momento, discutir as ridículas alegações apontadas pela defesa de Lula, que
recorre até mesmo a uma teoria da conspiração sobre um acerto que teria sido
costurado mais de um ano antes de uma eleição presidencial, quando a maioria
dos analistas considerava que Bolsonaro, apesar da boa posição nas pesquisas em
meados de 2017, naufragaria na hora da campanha, que repetiria a polarização
entre petistas e tucanos. Nem é preciso afirmar quão absurda é a pretensão de
considerar como prova da suspeição de Moro o conteúdo dos supostos diálogos
publicados pelo Intercept, cuja autenticidade nem mesmo é comprovada, o que a
torna inútil como evidência em um tribunal. Mas todas essas inconsistências são
o motivo pelo qual, se a Segunda Turma efetivamente anular os atos de Moro no
processo do tríplex, terá desferido um golpe decisivo contra a Lava Jato –
muito mais mortal que as decisões sobre a prisão após condenação em segunda
instância, ou que a anulação de sentenças nos casos em que corréus delatados
não entregaram suas manifestações finais após corréus delatores.
Nunca é demais recordar o
que a Lava Jato representa para o Brasil desde que foi deflagrada, cinco anos e
meio atrás. Não se tratou apenas de desvendar um dos maiores – se não o maior –
esquemas de corrupção da história do país, grave pelo montante desviado e ainda
mais grave pelo objetivo do desvio, o de fraudar a democracia brasileira. O
mensalão já havia aberto uma rachadura no dique da impunidade de poderosos, mas
de forma incompleta. Foi com a Lava Jato que finalmente peixes graúdos da
política e do empresariado nacional passaram a ser devidamente investigados,
processados e punidos, pagando pelo mal que fizeram ao país. E tudo isso
graças, especialmente, ao trabalho criterioso da força-tarefa sediada em
Curitiba e do então juiz Sergio Moro – até porque na outra frente, a dos
políticos com foro privilegiado, e que envolve a Procuradoria-Geral da
República e o próprio Supremo, os resultados demoram a aparecer, em parte pelo
engessamento processual desse tipo de ação.
A palavra-chave, aqui, é
“criterioso”. Os responsáveis pela Lava Jato, da investigação ao julgamento,
aproveitaram as experiências anteriores, bem ou mal-sucedidas – incluindo casos
de operações anticorrupção que terminaram anuladas, como a Satiagraha –, e
sabiam muito bem o que podiam ou não fazer. Não podemos, de forma alguma,
compactuar com a narrativa segundo a qual a Lava Jato comete “abusos”, como se
Moro e a força-tarefa tivessem decidido que, para combater uma quadrilha
poderosa e influente e impedir que tudo terminasse em impunidade, seria
necessário cruzar deliberadamente a linha que separa a legalidade da
ilegalidade. Os atos processuais invocados pela defesa de Lula como evidência
da “parcialidade” de Moro se deram todos de acordo com a lei, e mesmo casos
mais controversos se deram em questões passíveis de interpretação, de forma
pontual, sem que se possa vislumbrar neles qualquer indício de que Moro
deliberadamente buscava a condenação de Lula. O que definiu o veredito no caso
do tríplex não foi uma predisposição do magistrado contra o réu, mas o
irrefutável robusto conjunto probatório levantado pela força-tarefa.
Aqui reside a gravidade de
uma decisão que anule os atos de Moro no processo do tríplex. Não se trata da
adequação da lei ordinária à Constituição, como ocorreu com a prisão após
condenação em segunda instância; nem de buscar preservar o direito ao
contraditório e ampla defesa, como no caso das alegações finais de corréus
delatados. Essas são decisões a nosso ver equivocadas, mas que envolvem a
interpretação da lei. Se decidir que Moro agiu de forma parcial, a Segunda
Turma, independentemente da boa ou má fé que guia cada ministro, terá rasgado
um processo transcorrido totalmente dentro da lei para beneficiar o mais
célebre e o mais poderoso dos réus da Lava Jato. É a “mensagem de leniência”
enviada à sociedade, para usar palavras do procurador Deltan Dallagnol que lhe
motivaram uma perseguição no Conselho Nacional do Ministério Público. É um
sinal inequívoco, para todos os interessados em cumprir e fazer cumprir a lei,
de que com algumas pessoas não se mexe.
Quando a Lava Jato
começou, o paralelo com a Operação Mãos Limpas, na Itália, era evidente e
reconhecido inclusive por Moro e pela força-tarefa, que previram a repetição,
no Brasil, da ofensiva para impedir que o combate à corrupção prosperasse. O
Congresso brasileiro, infelizmente, tem repetido o roteiro italiano, destruindo
as Dez Medidas Contra a Corrupção, aprovando a lei de abuso de autoridade e
minando o pacote anticrime de Moro. Mas será absolutamente indecente se,
diferentemente do que ocorreu na Itália, o golpe mais duro em defesa da
ladroagem – ainda que não seja essa a intenção – vier da mais alta corte do
Judiciário brasileiro.
Gazeta do Povo - 23.12.2019