O exame de DNA da reforma
da Previdência
Quem imaginaria, três anos
atrás, que hoje teríamos forças políticas brigando pelo crédito da aprovação de
uma reforma então vista como impensável, que “tiraria direitos” dos
brasileiros, “acabaria com a aposentadoria” e faria o cidadão “trabalhar até
morrer”, para citar apenas alguns dos slogans usados pela oposição de esquerda
em sua campanha de desinformação? Pois é o que tem acontecido com a reforma da
Previdência, que está em seus estágios finais de aprovação na Câmara dos
Deputados, após meses de tramitação, idas e vindas, e deve passar por processo
semelhante no Senado antes de virar realidade. De repente, a reforma da
Previdência não é mais o “filho feio” que, diz o provérbio, “não tem pai”:
todos querem ser aprovados no teste de paternidade, com certa dose de razão, já
que não haveria reforma sem a confluência de um conjunto abrangente de atores
políticos.
A começar, logicamente,
pelo presidente Jair Bolsonaro e a equipe que ele escolheu, como o ministro da
Economia, Paulo Guedes, e o secretário da Previdência, Rogério Marinho. É
verdade que vários outros candidatos ao pleito de 2018 também prometeram
reformar a Previdência – até o adversário de Bolsonaro no segundo turno, o
petista Fernando Haddad, que não incluiu o tema em seu plano de governo,
mencionou a necessidade de reforma durante a campanha, ainda que em termos
bastante tímidos. De qualquer modo, foi Bolsonaro quem venceu a disputa e
efetivamente cumpriu o prometido, enviando ao Congresso uma boa proposta de
reforma, com potencial de impedir o caos fiscal que se aproxima no médio e
longo prazo.
Vários parlamentares e
partidos que
desejam ver seu nome no resultado do teste
de DNA da reforma da
Previdência precisam
admitir também que eles transmitiram
à cria mutações que a
deixarão enfraquecida
Sim, houve momentos em que
presidente e equipe econômica mais atrapalharam que ajudaram. Bolsonaro, logo
no início da tramitação, enfraqueceu a posição do governo ao citar várias
concessões que poderia fazer; e, mais recentemente, defendeu o afrouxamento das
regras para policiais. Guedes embarcou em uma guerra verbal com o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), quando da divulgação do relatório de Samuel
Moreira (PSDB-SP). Mesmo assim, dizer que a reforma passa apesar de Bolsonaro é
um enorme exagero que não reconhece o importante papel do presidente e da
equipe econômica.
Um papel, aliás, que lhe
havia sido dado pelas urnas e foi endossado pelas ruas. Se a Previdência entrou
na campanha em 2018, foi graças ao ex-presidente Michel Temer e seu ministro
Henrique Meirelles, que fizeram a primeira proposta de reforma, posteriormente
engavetada. Eles chamaram a atenção, acertadamente, para a necessidade de
mudanças. Mas, além das complicações que Temer enfrentou, tendo de gastar
capital político para salvar seu mandato em vez de aprovar a reforma, o
presidente não tinha o endosso popular que Bolsonaro recebeu, com quase 58
milhões de votos. E, sentindo que a reforma corria risco, os brasileiros foram
às ruas em 26 de maio para reafirmar seu apoio, algo inédito para o país,
considerando a natureza do que era pedido, e que também não pode ser
descartado.
E a Câmara dos Deputados?
Maia, como presidente da casa, tinha o poder de acelerar ou atrasar a
tramitação da reforma. Não há dúvidas de que trabalhou por ela, mas houve
momentos, meses atrás, em que, alvo de críticas – que podem até ter sido
infundadas, mas que um político com sua experiência devia ser capaz de suportar
com mais resiliência –, ele ameaçou deixar a articulação pela reforma, o que
teria sido fatal. Especialmente após a divulgação do relatório de Moreira na
Comissão Especial, Maia tentou, mas não conseguiu impedir o Centrão de se impor
e colocar condições para dar os votos necessários à aprovação.
Centrão, aliás, que várias
vezes reivindicou o protagonismo na tramitação da reforma. “A reforma da
Previdência que pode ser aprovada não será a do governo. Será uma outra, que
estamos construindo”, chegou a dizer o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB),
líder do bloco. “Construção”, no caso, é mera força de expressão, porque todas
as condições impostas pelo bloco para apoiar a reforma foram no sentido de
enfraquecê-la. Mas seria injusto jogar toda a desidratação da reforma nas
costas do Centrão, pois a votação dos destaques em plenário, iniciada nesta
quinta-feira, mostrou que até o PSL, partido do presidente, ajudou a aliviar as
regras de aposentadoria para setores que lhe são caros.
Haveria reforma sem os
votos do Centrão? Provavelmente não. Mas, se esses parlamentares e partidos
querem ver seu nome no resultado do teste de DNA da reforma da Previdência,
precisam admitir também que eles – e muitos outros que não pertencem ao bloco –
transmitiram à cria mutações que a deixarão enfraquecida, como as concessões
exageradas a certas categorias, a exclusão de estados e municípios, ou o fim do
gatilho automático que reajuste as idades mínimas à medida que aumentar a
longevidade do brasileiro.
A aprovação da reforma da
Previdência é, sem dúvida, uma construção coletiva. Houve os que a propuseram,
os que a apoiaram desde a primeira hora, os que a apoiaram em sua integridade,
os que a pediram nas ruas, os que deram seu voto quando importava. Alguns
destes atores, ressaltamos, nem sempre colocaram muito empenho no tema, e por
vezes até colocaram obstáculos. Evidente que, aprovada a reforma, saber quem é
o pai da criança é o de menos, mas Brasília vive, em boa parte, da aquisição e
manutenção de capital político-eleitoral; e o fato de o apoio a uma reforma
como a da Previdência ter se tornado algo positivo em vez de uma “sentença de
morte eleitoral” não deixa de ser notável.
Gazeta do Povo – 13.07.2019