A derrota das bandeiras
vermelhas
Conheço muita gente
que tem carteira de identidade, carteira do trabalho, título eleitoral,
passaporte, mas não sabe quem é. Embora os documentos informem que o sujeito é
cidadão brasileiro, ele não tem a menor ideia do que isso significa. Aliás,
parcela de nossa população dá sinais de se ver como um mamão, que aparece do
nada, grudado a um pé de planta, o mamoeiro Brasil, no qual se nutre até, um
dia, cair do pé. Raros são os que se percebem dentro de uma linha histórica. E
esta linha, como regra quase geral, se e quando apresentada, o é de modo a
merecer nenhuma estima. Até bem recentemente, ser brasileiro não era algo que
infundisse sentimentos positivos.
Apesar de nos meus
tempos de colégio haver estudado história como se come bergamota, um gomo
depois de outro – História do Brasil, História Geral, História do Rio Grande –
sempre me interessei pela bergamota inteira. Os pontos de contato habitualmente
mencionados eram sempre três e apenas três: Tomada de Constantinopla originando
as Grandes Navegações, União Ibérica produzindo as encrencas no Prata, Guerras
Napoleônicas determinando a vinda da Família Real. Estes eventos, porém, são
apresentados como meras relações de causa e efeito e nada dizem sobre o que
realmente importa. Quando empreendemos a busca de nossas raízes, vamos
realmente longe, voamos realmente alto e não há como não valorizarmos nosso
passado e herança cultural e civilizacional: idioma, fé e integração ao
Ocidente.
O idioma que
falamos é importantíssimo patrimônio cultural, fator de unidade e de
identidade. Muita coisa aconteceu na História para que o latim vulgar chegasse
à Lusitânia romana e se tornasse o idioma que aprendemos da voz dos nossos
pais. Com efeito, foram as Guerras Púnicas e a derrota final de Cartago em 146
a C. que consolidaram o domínio romano no Mediterrâneo, a conquista da Ibéria
e, nela, o surgimento da pequena província romana chamada Lusitânia. Ora, sem a
presença dos romanos, talvez o povo da região falasse o idioma púnico dos
cartagineses, ou o germânico dos Suevos, ou o gótico dos visigodos que
incorporaram a região da Galícia e Portugal em 585 d.C.. Essa história é nossa
história.
A religião, por sua
vez, é parte integrante da cultura de todos os povos, sem exceção. Não há povo
sem religião. Entremeado com a história, o cristianismo está na essência de
nossa cultura. A Península Ibérica, onde estão cravadas as raízes da
nacionalidade brasileira só se tornou católica em virtude de episódios
decisivos ocorridos no final do 6º século. Fatos e feitos marcantes, conduzidos
pelo Senhor da História, aconteceram para que a cruz assinalasse o velame das
caravelas portuguesas que chegaram ao Brasil nove séculos depois. Foi o
martírio de São Hermenegildo por determinação do próprio pai, o rei visigodo
Leovigildo, que converteu seu irmão e futuro rei Recaredo, levando-o a convocar
o III Concílio de Toledo (589) e dando início à longa história da Espanha
católica e visigótica. Também essa história é indissociavelmente nossa.
Naquela extremidade
do continente europeu nasceria Portugal quando Afonso VI de Leão e Castela
presenteou seu genro, o conde Henrique de Borgonha, com o condado onde seu
filho, Afonso Henriques, viria a se proclamar rei. Expulsou os mouros, defendeu
suas fronteiras dos vizinhos e obteve reconhecimento pontifício da
independência em 1179. Nos três séculos seguintes, o pequeno Portugal
disputaria com a Espanha o primado entre as nações daquele tempo, andaria por
“mares nunca dantes navegados” e ampliaria o mapa mundi levando “a fé e o
império”. O Brasil foi parte dessa epopeia narrada por Camões.
Como entender que
herdeiros de uma história tão rica e tão nossa possam conviver com esse
complexo de cachorro vira-latas, no dizer de Nelson Rodrigues? Donde esse
sentimento que, a muitos, faz rastejar culpas e remorsos, rumo a um estuário de
vilanias e maldições?
Há em nossa
história, como na de qualquer povo, cantos escuros, páginas tristes, fatos
reprováveis. Modernamente, muitas nações estão expostas ao mesmo revisionismo,
às mesmas árduas penitências e remordimentos que servem às novas versões da
luta de classe marxista. De todas essas nações, porém, nos chegam, também e
principalmente, lições de orgulho nacional, de culto a seus grandes vultos e
feitos, de cidades adornadas com monumentos a eles erguidos como reverência de
sucessivas gerações.
Nós, brasileiros,
somos herdeiros da mais elevada civilização que a humanidade produziu. No
entanto… Onde estão nossos monumentos a Bonifácio, Mauá, Caxias, Nabuco,
Patrocínio, Pedro II, Isabel, Rio Branco, Rui? Quantos brasileiros conseguiriam
escrever cinco linhas sobre qualquer deles? O que estou a narrar começou com a malconduzida
propaganda republicana anterior e posterior à Proclamação, no intuito de romper
nossas raízes europeias.
Nada, porém,
agravou tanto essa dificuldade nacional quanto a história ensinada em sala de
aula como pauta política que vem fazendo dos conflitos sociais o próprio
oxigênio sem o qual não consegue respirar.
Se não vemos
dignidade em nossa história, dificilmente a veremos em nós e muito mais
dificilmente a veremos nos demais. Se não temos raízes, se elas são rompidas,
tombamos ao menor impacto. Parte importante da mudança política ocorrida no ano
passado é o reencontro do povo brasileiro com o amor ao Brasil. Verde e
amarelo, ele representa a derrota das amargas bandeiras vermelhas.
Percival Puggina
Gazeta do Povo